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Carnaval também pode enfatizar preconceitos, dizem especialistas

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“Nega do cabelo duro / que não gosta de pentear / quando passa na Baixa do Tubo / o negão começa a gritar”

“O teu cabelo não nega, mulata / porque és mulata na cor. / Mas como a cor não pega, mulata / Mulata, eu quero o teu amor”

 

Geyson Magno/UOL

Nega Maluca é uma das fantasias mais tradicionais do carnaval.

 

O Carnaval é uma das manifestações mais populares e autênticas do povo brasileiro. Há quem diga que nele que em que tudo é permitido: sorrir, brincar, extravasar alegria. Mas também há pessoas que não têm muitos motivos pra achar graça em algumas “brincadeiras”. Algumas fantasias e músicas são tidas como ofensivas por alguns foliões que chegam a ficar mais chateadas que Pierrô sem Colombina. 

Um episódio ocorrido há alguns anos atrás fez com que o grupo Matizes, tradicional defensor da causa LGBT abolisse músicas como “Fricote” de Luiz Caldas de suas festas carnavalescas. “Nós já tínhamos esse hábito de evitar músicas de duplo sentido, composições que falam de maneira pejorativa da estética negra e reforçam preconceitos, acabando por marginalizar a outra parte, mas uma vez o DJ de uma de nossas festas não se atentou para isso e começou a tocar ‘nega do cabelo duro, que não gosta de pentear’. Uma moça que estava lá ‘se sentiu’ e, discretamente, falou conosco. Então dissemos para ele que este tipo de música, não precisava ser tocada”, descreve. Ela acrescenta que a entidade busca utilizar músicas que procuram exaltar a estética negra e que sejam “o mais politicamente corretas possível”.

Carmen concorda que o carnaval é um momento importante da cultura brasileira, mas acredita que é preciso ter bom senso. “É um momento em que as pessoas vão brincar e se divertir, mas não pode tudo. Não pode colocar para fora seu racismo, homofobia e machismo”, assinala, lembrando que a tradicional fantasia de “nega maluca” também pode ser uma forma de ofender os negros, ainda que involuntariamente. 

 

Arquivo Pessoal

 

“Muita gente não entende que isso dói na pessoa negra. Tentam minimizar ‘é só uma música, é só uma fantasia’. Não é. Na maioria das vezes, não se atentam. Até porque são questões que se aprende desde pequeno. A cultura discriminatória é tão arraigada que as pessoas tendem a só levar na esportiva, acabam não se dando conta que a fantasia ou o personagem é portador de algum tipo de discriminação”, reforça. 

O professor de Antropologia, Fabiano Gontijo, cuja dissertação de mestrado trata sobre homossexualidade no carnaval do Rio de Janeiro, observa que a Folia de Momo acaba se tornando um campo discursivo bastante amplo e diversificado. “O carnaval, como um grande conjunto ritual, engloba a prática de fantasiar-se para experimentar ou viver ‘o outro’ durante um curto momento. Na Europa medieval, por exemplo, eram comuns, durante os carnavais daquela época - inseridos em ciclos festivos bem diferentes dos atuais -, fantasias de animais. Homens se vestiam de animais para experimentar - ter a experiência - a animalidade e, assim, reafirmar sua diferença em relação aos animais, ou seja, reafirmar a superioridade da cultura sobre a natureza”, pontua.

“Outro tipo de fantasia que, pouco a pouco, vai se tornar comum nos carnavais, não só europeus, mas já brasileiros, desde o início do século XX, é o travestismo: homens se vestindo de mulher para experimentar a feminilidade, numa sociedade hierarquizada de tal modo que o homem domina a mulher. Mais uma vez, aqui, nós temos a reafirmação da cultura sobre a natureza, já que o homem se coloca como produtor de cultura e a mulher como representação da natureza. Roberto DaMatta, num livro chamado ‘O Universo do Carnaval’, de 1980, observa que outro tipo de fantasia comum nos carnavais brasileiros era aquela da mulher que se veste de prostituta ou de freira. Essas fantasias seriam formas de ‘brincar’ com esses dois extremos da feminilidade”, contextualiza.

Neste cenário, segundo o professor, o carnaval se firma como um espaço de representações efêmeras, que duram pouco tempo. “Outra autora, Maria Isaura Pereira de Queiroz, diz que, quando vemos nas escolas de samba, pessoas negras vestidas de príncipes e rainhas, é como uma forma de ascensão social simbólica – de mentirinha – permitida pelas elites porque se trata de um curto lapso de tempo, ritualizado”, acrescenta. 

 

Arquivo Pessoal

 

Gontijo explica que, como o carnaval as pessoas se fantasiam para experimentar a força do que elas não são, fantasiar-se acaba sendo também um ato político, tanto para o bem quanto para o mal. “Quanto ao tal preconceito velado, acho que o carnaval e as fantasias servem meio que para exorcizar, para aumentar certas realidades e minimizar outras, expor umas coisas e apagar outras, e, assim, serve para incitar a reflexão sobre a vida cotidiana, sobre o resto do ano, sobre a estrutura social”, afirma. 

O professor acredita que o esse preconceito velado visto por alguns grupos e militantes acabam levantando discussões de forma positiva e o carnaval é um momento ideal para discutir raça, sexualidade entre outros temas polêmicos. O mesmo vale para as músicas que podem ofender. “Fico chocado com as marchinhas antigas, como a ‘Cabeleira do Zezé’ ou ‘O teu cabelo não nega’. Mas é possível refletir sobre isso, dar outra conotação. Utilizar as negas malucas, por exemplo, como uma forma de crítica à apatia da sociedade em geral na reflexão sobre o racismo, sexismo ou a homofobia”, propõe. 

 

Carlos Lustosa Filho
[email protected]

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