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Documentos da censura revelam letras originais de Martinho da Vila, Leci Brandão e Nei Lopes

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Quando um samba ou samba-enredo de sua autoria era vetado durante a ditadura, o que aconteceu algumas vezes, Martinho da Vila ia pessoalmente falar com os censores para tentar liberá-los. Mas nunca chegou a ler os pareceres dos militares — até a semana passada, quando viu os documentos inéditos encontrados durante a digitalização do acervo da Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal, que funcionou entre 1964 até 1985. O levantamento dos documentos de sambistas como Martinho, Leci Brandão e Nei Lopes está sendo feito pelo pesquisador Stephen Bocskay, da UFPE, que finaliza o livro “Samba e afro-política durante a ditadura militar brasileira” — trabalho que deu origem à série de reportagens que teve início ontem no GLOBO.

— “Por que o senhor não gostou da letra, senhor?”, eu perguntava, e às vezes o sujeito mostrava que era só um verso que tinha problema, e eu trocava. Acho que ninguém tinha coragem de ir até lá, eles ficavam espantados. Ou então gostavam das minhas músicas — diverte-se Martinho, contando que a letra original da música “Disritmia”, de 1974, quase foi censurada por causa da palavra “porre” (“Vem logo, vem curar seu dengo, que chegou de porre, lá da boemia...”). — O censor disse que aquele verso não podia, porque havia um índex de palavras proibidas. Como eu estava lá, pedi a ele para me mostrar. Na lista tinha “bêbado”, tinha “bebida”, mas porre não tinha... Aí ele teve que aprovar. É mole? Mesmo depois de Elizeth Cardoso gravar “Eu bebo sim...”.

Como faziam outros tantos compositores da MPB para burlar a censura, essa também era a estratégia de Martinho: trocar palavras e reenviá-las ao escrutínio. Ao ver a letra original de “Segure tudo”, Martinho lembrou-se que teve de trocar “essa tal liberdade”, por “essa tal felicidade”. Na letra de “Que coisa louca”, o verso “Que cintura curva, que vulva, que vulva” foi terminantemente proibido. O parecer do veto: “Na referida letra o autor exalta com muita malícia os dotes físicos da sua amada, referindo-se à parte externa do órgão sexual feminino. Martinho alterou para “que uva, que luva” e gravou no álbum “Rosa do Povo”, de 1976.

— Vou voltar a cantar “que vulva”! — comenta.

Bocskay argumenta que desde a primeira música censurada de Martinho, “Menina moça”, de 1967, os censores já defendiam os códigos morais “dos bons costumes” com critérios inconsistentes, que exageravam a interpretação:

— “Menina moça” é um partido alto que falava da insatisfação feminina, e foi julgada como uma afronta contra a instituição da família. Naquela época, a discussão sobre o divórcio no Brasil era intensa, e o verbo “amigar” usado na letra era considerado um palavrão (“tá desquitada quer se amigar/ quer se amigar iá, iá”).

“Menina moça” deu trabalho aos censores. Quando a música foi proibida, tinha sido classificada no III Festival da MPB na TV Record e já estava sendo cantarolada pelo público.

— Um diretor da TV precisou ir a Brasília e explicar que tirá-la ia provocar confusão. E ela foi liberada só para o festival, sem poder ser gravada comercialmente — prossegue o pesquisador, que veio ao Rio no início do ano para aprofundar o levantamento. — Quando Martinho foi gravar seu primeiro disco em 1969, mais uma vez tentou e foi negado. E assim foi até a terceira tentativa, quando colocou outro pedaço, “não tá amando, só quer chorar, pra que chorar, levante a cabeça vai se consolar.” Aí autorizaram.


Com os documentos em mãos pela primeira vez, Martinho se lembrou de outra história: a de uma parceria com Mario Lago, “Samba de irmão”, que só foi liberada porque o ator foi mais rápido:

— O título original era “No escuro”, mas ele me alertou: com esse título, e com o nome dele na parceria, a música não passaria. Aí mudei para “Samba de irmão”. Ele inventou o pseudônimo Pádua Corrêa. A música passou — conta Martinho, emendando na história de “Reversos da vida”, música sua que a censura vetou por causa do verso “de um câncer sem cura”, pela alusão à doença, deixando escapar o irônico “Um corte nos versos, reversos da vida”.

Entre os sambas encontrados, os de Leci Brandão e Nei Lopes foram lidos como ‘irônicos’ e ‘racistas’

Compositora de temas políticos e sociais, Leci Brandão estava no auge da sua produção musical quando a ditadura militar começou a apertar. O primeiro problema que teve com a censura foi com uma música de Geraldo Pereira que tentou gravar no seu primeiro compacto, em 1974: “Ministério da Economia”. Dizia a letra: “Seu presidente, Sua Excelência mostrou que é de fato/ Agora tudo vai ficar barato/ Agora o pobre já pode comer/ Seu Presidente, pois era isso que o povo queria/ O Ministério da Economia parece que vai resolver/ Seu Presidente, graças a Deus não vou comer mais gato/ Carne de vaca no açougue é mato/ com meu amor eu já posso viver”. Foi vetada sob os seguintes argumentos: “O autor não faz outra coisa senão ironizar todos os esforços do governo no sentido de estabilizar os custos de vida”.

— Eu lembro dessa história, lembro também de uma balada que teve problema, chamada “Vamos ao teatro?”, que incentivava as pessoas a entenderem o que estava acontecendo no cenário político indo ao teatro — conta Leci, sem se lembrar, no entanto, de mais uma: o samba de 1976 “Hora do canto geral”.

Ela havia se esquecido completamente da música. Só agora, 41 anos depois, vendo o documento pela primeira vez, animou-se até em fazer uma nova versão para apresentar ao público, quando lançar o novo álbum de inéditas, “Simples assim”, que acabou de gravar.

Vetados sem justificativa escrita, os versos foram apenas sublinhados pelos censores: “Vamos acertar os ponteiros, marcando hora do canto geral/ Vamos acertar os ponteiros, fazendo de conta que é Carnaval/ vamos resolver o problema, no teatro, no cinema, no trabalho e na escola/ Mas tudo tem de ser acompanhado/ Por um surdo ritmado/ um pandeiro e uma viola”. Ao ver pela primeira vez o documento original, Leci emocionou-se.

— Pode escrever aí: Leci vai gravar esse samba — garantiu a compositora.

Entre os cerca de 1.500 sambas do montante da pesquisa de Bocskay, pelo menos 79 eram de autoria de Nei Lopes. Cinco deles foram censurados, sendo gravados com pequenas alterações anos depois. “Tributo a Cassius Clay”, em parceria com Reginaldo Bessa, de 1973, acabou virando “Muhammad Ali”, na voz de Sônia Santos, em 1974.

Foi vetada pelo verso “É mão fechada, negra mão”, recebendo um parecer contraditório e truncado: “A letra em pauta tem a pretensão de divulgar ideias racistas numa luta pró-poder negro, problema que felizmente não é nosso, pois somos todos iguais”.

— Há um desejo hegemônico em extirpar o elemento negro, um desprezo pela diáspora negra em todas suas expressões, e um esforço em aniquilar o afro-perspectivismo — lista Stephen Bocskay, referindo-se ao próprio Estado.

As outras músicas censuradas de Nei foram “Curta que a vida é curta”, também em parceria com Reginaldo Bessa; “Meu samba, minha fé”; “Coisa da antiga”, que foi depois gravado por Clara Nunes, e “Eu não falo gringo”, parceria com João Nogueira. Apesar de saber dos vetos, Nei jamais tinha visto os documentos originais.

— Em “Curta que a vida é curta”, eles leram o verso “Se você num canta, cê num tá cum nada, ô, ô, cum nada” com a interpretação erótica de “conada”, de “cona”, “vulva”, e proibindo a gravação — comenta Nei, espantado.

De acordo com a justificativa escrita no documento, os censores solicitavam a gravação original e vetavam a letra “pelo conteúdo duplo, de sentido pornográfico”.

— Vendo isso, acabei me lembrando de outra música que também tive que mudar por orientação da gravadora, “Candongueiro”. O verso original era “Meu avô cantava jongo/ pra tramar se libertar” — comenta o compositor e escritor, que fez questão de ficar com uma cópia dos documentos para si. — Depois troquei para “pra poder se segurar”, e a música passou. Naquele tempo não se falava nisso, ninguém comentava que o samba de ninguém havia sido censurado, era um tabu.

 

Fonte: O Globo 

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