Paulo Machado - Poemas
22/12/16, 15:07
foto:Gabriel Torres
Paulo Machado, é advogado, defensor público, poeta e contista. Pertence a geração pós-69. Participou de coletâneas e antologias. Ganhou alguns prêmios literários. Na década de setenta, fez política estudantil e editou, ao lado de companheiros de geração, o jornal mimeografado “Zero”. Integrou o grupo responsável pela edição do jornal alternativo “Chapada do Corisco”, em 1976 e 1977, em Teresina. Publicou Tá pronto, seu lobo? (1978) e A paz do pântano (1982), livros de poesia. Publicou também As trilhas da morte: extermínio e espoliação das nações indígenas na bacia hidrográfica parnaibana piauiense (2002).
Herança
à artista plástica Norma Couto
na senador pacheco 1193 há um poema
onde os primos, em volta da mesa, guardam suas ânsias
diante das pastilhas de hortelã.
e o avô na sala de espera
sonha com o voo dos pássaros
buscando as canaranas.
(às vezes de sobrecenho, fala da guerra de 14,
da gripe espanhola)
o tio já não tosse dentro da noite
arranhando um estranho silêncio
no fim do corredor
que muito se assemelha
ao gesto acanhado dos meninos
com suas canecas, à espera das cabras.
no verão, da mesma forma que no poema,
não há lodo no muro
e as lagartixas passeiam ao sol.
da nudez das pedras e do vermelho
arrebenta um verso
cicatriz esquecida.
(nesse poema o difícil
é não ser trágico)
no quintal, a erva cidreira cresce
por entre as rachaduras das lajes,
sussurrando boatos de revoltas.
na sala de jantar, o perigo do naufrágio
nas tradições de há séculos.
há um poema que rói o tédio,
na senador pacheco, 1193.
Um Galo Negro
Um galo negro,
(no campo absurdo
da página branca)
estranhamente esquecido
entre papéis, na escrivaninha.
Um galo negro,
(crista serrilhada
e afiados esporões)
desvelador de auroras,
desafia a fúria do sol bronze.
Um galo negro,
(trama de ramos de parábolas
e instigantes linhas quebradas)
ícone reinventado
no desenho de
Gabriel Archanjo.
O Rio
ao poeta Cineas Santos
preciso urgentemente escrever um poema!
que os versos sejam vorazes,
lembrando do rio de minha cidade,
comendo as pedras do cais.
mas como escrevê-lo?
como domar o rio de minha cidade
à condição de poema?
o rio de minha cidade não pede adjetivos,
principalmente recusa os que o tornam abstrato.
o rio de minha cidade é um rio migrante,
Por que aprisioná-lo no corpo de um poema?
o rio de minha cidade guarda em suas entranhas
o orgulho do homem sozinho.
o rio de minha cidade é água viva na carne,
água pesada na memória.
o rio de minha cidade é torto
como uma cicatriz
fazê-lo reto seria contradilê-lo
vivê-lo, petrificá-lo nas retinas
esquecê-lo, jamais
preciso urgentemente escrever um poema!