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Cigana rompe com grupo e se torna a 1ª da América Latina a ter doutorado

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Nascida em um grupo que valoriza a oralidade e rejeita a escrita, uma cigana do Distrito Federal teve que romper com a família para seguir o sonho de estudar. Aos 15 anos, Paula Soria deixou a comunidade romà – nomenclatura para ciganos, ratificada em 1971 – para não ter que casar e assim seguir um novo caminho. Após fazer duas graduações e um mestrado, ela se tornou a primeira romani, ou cigana, a concluir doutorado na América Latina.

A acadêmica diz haver duas mulheres ciganas com doutorado na Espanha e um homem com doutorado em biologia no Brasil. Ela acredita que haja outros doutores romanis no leste europeu. Paula conta que os três principais grupos romanis são o rom, o calles, e o sinti, ao qual pertence.

Ela fez mestrado e doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). A tese, de 330 páginas, estuda a literatura romani contemporânea. Os seis romances analisados recuperam a história, mostram a realidade do grupo e tentam desmitificar estereótipos criados ao longo do tempo.

"É uma identidade que se construiu na defensiva, reativa. De acordo como as coisas foram acontecendo na história, os romàs foram reagindo. Houve a perseguição, a discriminação, a tentativa de genocídio cultural e étnico que muitas vezes foram silenciados na memória", explica.

"Então, para entender essa literatura romani, tive que passar pela história para mostrar como foi construída a imagem dos romàs, porque chegam a ser identificados como hereges, como ladrões de crianças, porque se dissolveram totalmente os laços simbólicos."

Ela diz que ainda hoje o preconceito com os ciganos é grande. “Eu lembro de uma cena de uma barraca queimada que alguém queimou intencionalmente. Me perguntava porque faziam isso com a gente, observava a discriminação, o jeito com que os outros nos olhavam. Todos nós sabemos dentro do grupo o quanto somos rejeitados, ninguém ignora, nem uma criança."

Paula conta que a fascinação por livros foi o ponto de partida para o desejo de estudar. Aos 10 anos, entre uma migração e outra de país, ela foi registrada em Brasília, mas não sabe dizer em qual país de fato nasceu. "Ao ver os livros nas escolas eu imaginava ingenuamente que poderia contar ao outro como nós somos. Eu imaginava que para escrever tudo isso eu tinha que estudar. Não é que eu adorasse matemática, geografia. Eu queria escrever livros."

Depois de romper com o grupo, a acadêmica passou por instituições de vários países, até que se formou em jornalismo na Universidad Nacional Autónoma de Honduras. Apesar de ter conseguido apoio de vários amigos não romàs, ela afirma que o percurso não foi fácil.

"Passei por Argentina, Bolívia, Peru, estive no Brasil, onde efetivamente fiquei um tempo. Tive bastante ajuda porque as pessoas viam minha vontade de estudar e auxiliavam, acho que o destino fluiu. Fui fazendo amizades e continuei migrando."

Foi na segunda graduação de Paula, em artes cênicas na UnB, que ela conheceu a professora Sara Almarza, que a orientou no mestrado e doutorado. Durante um seminário em uma disciplina optativa, Paula pôde pela primeira vez falar sobre sua cultura.

"Minha preocupação sempre foi dar a conhecer a cultura, quebrar com alguns estereótipos, ao menos que seja um grão de areia, só com você, só com ela, e isso aconteceu naquele seminário. A resposta foi boa das pessoas, percebi que muitos não sabiam realmente nada."

Sara conta que quando Paula entrou no mestrado, todos os professores queriam orientá-la. “Ela me escolheu como orientadora. Ela está dando a conhecer novos escritores que escolhem como assunto suas raízes”, disse. “A Paula trabalha muito bem como a cultura está crescente na oralidade e como o grupo se conserva na própria cultura.”

Na dissertação, Paula trabalhou com duas obras de escritores romanis, mas foi no doutorado que ela se aprofundou sobre o assunto, estudando um autor norteador argentino, além de uma escritora francesa, um alemão, um húngaro, um espanhol e um canadense.

"Eles trazem a desconstrução do estereótipo, a presença do híbrido, que são pessoas assim como eu, que são híbridos culturais que negociam com as duas culturas, e a maior parte desses híbridos significa que foram à escola."

Após fazer a primeira graduação, ela conta que retomou o contato com alguns integrantes do grupo, principalmente com a avó. "Eu fui criada com minha avó em uma família extensa, todo mundo junto, muitas crianças e minha avó era o centro, e ela hoje é quem consegue perceber a importância [do estudo], como muitas mulheres conseguem perceber, mas não fazem nada."

Paula ressalta que a decisão de romper com a família quando jovem foi pessoal e que não faz apologia para que os romanis saiam dos grupos que pertencem para estudar. "Eu gosto de deixar claro que eu não tenho um orgulho exatamente da trajetória”, declarou.

“Eu fiz o que achei por bem, foi minha história de vida, mas minha vontade é que outras pessoas possam ter como exemplo, mas não precisam deixar o grupo. Não estou fazendo apologia para ‘vamos sair todos do grupo para estudar’. Eu acredito que cada vez mais estudar e ser do grupo seja viável."
Oralidade e o papel da mulher
A doutora explica que a oralidade na cultura romà foi assumida como uma defesa para evitar a aculturação e como uma forma de poder de fato manter as crianças restritas ao grupo. Ela diz que o estudo não é bem visto por ser um crescimento individual. “O que importa entre os romàs é o coletivo, e não o individual. Logicamente que não se percebe que o estudo vai trazer crescimento para o próprio grupo no fundo.”

De acordo com Paula, poucas famílias autorizam as crianças a irem à escola. As meninas que recebem o aval devem sair das instituições quando menstruam, por estarem aptas a casar. As mulheres, segundo ela, têm que aprender a cuidar da casa, cuidar do marido, “preparar para ser uma boa romani”.

“Se considera que a educação formal não vai servir para o grupo, porque ali a mulher precisa ser boa e hábil com o comércio, com algumas práticas divinatórias, então se considera que é inútil aquilo, pelo menos tem sido assim. O pensar da maioria dentro do grupo ainda é assim hoje, mas existe já uma minoria, um ativismo e algumas mulheres que estão se lançando a romper com esses paradigmas.”

Após o casamento, a mulher geralmente segue a família do marido. O homem paga um dote para a família da noiva, como forma de recompensa pela “perda” da família. “O outro imagina que isso é uma compra da mulher, mas lá dentro se pensa que é um ressarcimento necessário porque a mulher vai sair, ela é uma força de trabalho, ela trabalha muito, ela é criada para ajudar a família, trazer o sustento diário, e o homem é mais com os grandes negócios.”

Ela afirma que apesar de ser importante na comunidade, a mulher é inferiorizada. “É uma cultura machista, sexista, uma cultura patriarcal, onde o homem tem supremacia. A mulher é o estandarte do grupo. Com a obrigação de usar saias longas, coloridas, lenços e outros elementos culturais, a mulher está muito mais visível.”

 

Fonte: G1.

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