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Grupo telefona para idosos em quarentena e ouve histórias de amor, galinha e depressão

Foto: Roberta Aline/Cidadeverde.com

Muito antes do coronavírus, existiam as conchetas, apelido dado a mulheres italianas ou de família da Itália que, na São Paulo do século passado, viviam conversando pelos bairros de imigrantes europeus.

"Chama Conchetas por isso, é aquela coisa de [bairro da] Mooca, falando uma com a outra, sabendo da vida da outra", diz Silmara Ciuffa, 52, fotógrafa que é uma das três fundadoras de um grupo que liga para idosos que estão isolados em suas casas, simplesmente para papear -o nome é referência a esta figura do imaginário paulistano.

A iniciativa é da operadora de saúde Prevent Senior, que tem como público alvo pessoas mais velhas, justamente um dos principais grupos de risco do novo coronavírus. As atividades começaram no final de abril e atualmente o grupo tem 12 integrantes contratados pela empresa.

"Fomos treinados para ouvir e criar um diálogo que conforte nossos amigos do outro lado da linha", explica Teresa Gioia, 58, que é produtora musical e também fundadora.

Para o trabalho, foi criado um sistema, integrado com a database da seguradora, onde os atendentes anotam fatos relevantes das conversas que tem, por exemplo informações sobre o histórico de saúde, que podem ajudar num diagnóstico futuro.

Uma das preocupações, claro, é o cuidado médico. Por isso, os ouvintes sempre ficam atentos a sinais de alerta, mesmo este não sendo o foco principal do programa.

Silmara conta sobre a vez que conversou com uma beneficiária que estava no Brasil porque veio fazer um procedimento clínico relacionado a um câncer de mama, e não pode voltar a Los Angeles (EUA), onde mora, em razão da pandemia.

Com a filha e uma vida nos Estados Unidos, ela dizia que seu remédio para depressão havia acabado e que não tinha mais vontade de viver. Foi então que a fotógrafa entrou em contato com um médico da seguradora e conseguiu uma receita virtual.
"[Ela] conseguiu a medicação, está super bem, converso todo dia com ela, é uma das que eu sempre ligo. Ela me manda foto das crianças que ela cuidava [como babá nos EUA]", conta.

Uma outra vez, Silmara conversou com uma senhora que dizia ter um dores na barriga. A fotógrafa lhe indicou uma consulta por telemedicina, e o médico a encaminhou ao pronto-socorro, onde foi descoberto que ela estava com coronavírus.

"Na hora que ela fez a tomografia, já estava com o pulmão bem comprometido e, óbvio, foi internada. Dias depois teve alta. Ela não tinha nenhum sintoma da Covid-19, era só um desconforto abdominal", completa.

Mooquense, Ivon Ciuffa, 42, foi indicado pela irmã para entrar no programa. Barista de uma cafeteria no bairro ele mesmo afirma que era o estereótipo perfeito para o programa.

"Sou italiano, moro na Mooca, a gente fala muito e eu tenho esse perfil de falar. Até na cafeteria onde eu trabalho, tem um outro processo de fazer o café e tem um diálogo com o cliente", conta.

Pelo telefone, criou amizade com uma senhora de 82 anos que mora na vizinhança e que o convidou para um lanche da tarde em sua casa. Por conta da quarentena, teve que recusar a proposta, mas resolveu fazer uma surpresa: enviar uma carta, escrita à mão.

A resposta foi tão boa que, aos poucos, Ivon começou a mandar cartas aos idosos com quem mais conversa.
Lllian Braga é comissária de bordo aposentada e vive sozinha, com dois cachorros. Conta que gosta de abordar diferentes assuntos nas conversas. Certa vez, puxou papo sobre a vida amorosa de uma senhora de 78 anos.

"Ela tinha dois namorados e falava assim: Ai, agora como ficamos distantes não dá mais para a gente se ver e um deles deixou de ligar para mim, sinto muita falta. Fiquei passada. 'Eu conheci ele na rua', ela me disse. Como assim!?", lembra rindo sobre o diálogo.

Lillian conta que, no seu caso, o trabalho uma via de mão dupla completa, já que também está sozinha em casa e pode assim conhecer pessoas novas e fazer novos amigos e amigas.

Assim como colegas, diz que a enorme maioria das conversas é relacionada ao cotidiano dos beneficiários, histórias do passado e da família. Vez ou outra o papo acaba em política, tanto com apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mas normalmente com críticos.

Nazareth lembra a vez que debateu sobre o quão alto uma galinha poderia voar, porque uma senhora jurava que estava vendo uma, marrom, da janela de seu apartamento no sexto andar.

Ela relata o que ouviu: "Eu abri [a janela] e ela estava lá. Como essa galinha veio até aqui? Será que ventou? Não. Mas pode ter ventado sem eu ter visto".

"A senhora sabe que galinha não voa alto?" perguntou Nazareth na ligação. "Ah, mas essa voava, tava no galho da árvore!", ouviu em resposta.

Aos poucos, as atendentes foram descobrindo os melhores horários para entrar em contato: depois das 10h da manhã e não quando estiver passando novela na televisão.

Uníssona é a percepção de que o que mais os idosos querem é simplesmente alguém para conversar. A análise é que os familiares, por mais atenciosos que sejam, se atém a perguntas corriqueiras: se está tudo bem de saúde, se aconteceu alguma coisa importante que eles precisem saber.

Uma das dificuldades é o contato inicial, já que muitos idosos atendem desconfiados, alguns até achando que se trata de um golpe.

Isolados, os idosos costumam relatar tristeza por não poderem ver a família, os filhos, os netos. Também é a grande a afinidade deles com a leitura, mais que com filmes ou interações virtuais.

Este foi justamente um dos motivos pelos quais a iniciativa optou por usar o telefone e não a câmera de vídeo para a interação. "A maioria que a gente liga tem, 70, 80 anos, então é pelo telefone fixo [que conversamos]", conta Silmara.
"Mesmo quando ligamos no celular, eles pedem pra ligar no telefone, tem um hábito de ouvir o telefone tocar", completa Nazareth.

Após a quarentena, o grupo prepara uma série de atividades presenciais para este grupo de beneficiários. Um dos planos, segundo elas, é um workshop de tecnologia para idosos.

JOÃO GABRIEL
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

 

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