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"Ser mulher é mais do que ter uma genitália", diz 1ª transgênero do PI

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Por Carlos Lustosa - Cidadeverde.com
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A roqueira Rita Lee cantou certa vez que “mulher é um bicho esquisito. Todo mês sangra”. Já o filósofo Friederich Nietzsche, ateu convicto, declarou que “A mulher foi o segundo erro de Deus.” A também filósofa Simone de Beauvoir jogou na cara: "o homem é definido como ser humano e a mulher é definida como fêmea. Quando ela comporta-se como um ser humano ela é acusada de imitar o macho". Definições. O que elas querem dizer de verdade? Num mundo onde o ser masculino sempre esteve em um patamar de dominância na maioria das sociedades, a posição de seu gênero oposto, a autoafirmação deste, a luta pela igualdade de direitos e papei sociais pode ser vista em vários campos. Enquanto em alguns lugares é possível encontrar casos em que uma mulher consegue ser protagonista em vários setores da sociedade, há culturas em que elas sequer têm acesso à educação ou o direito sobre seu próprio corpo. Não é fácil ser mulher. Imagine quando, apesar de a cabeça dizer que se é, não se nasce fisicamente como tal. Esse é o caso contado ao CidadeVerde.com pela primeira transgênero do Piauí a fazer cirurgia para troca de sexo, Thatila Beatriz Gamisch, teresinense que é mulher fisicamente e de papel passado.

 

 

CidadeVerde.com - Para você, o que é ser mulher?
Thatila Beatriz - Ser mulher é mais do que ter uma genitália. É se sentir uma mulher mesmo, se identificar como tal. Não é obrigado você ter uma genitália de fato, como eu fiz, foi um complemento. É quando você tem beleza, vaidade, postura, elegância, entre outras qualidades.

Quando você se deparou e descobriu que era uma mulher?
Quando eu era criança, me sentia diferente e vi que não era do sexo masculino, mas do feminino. Eu tinha oito anos e não me aceitava. Não tinha a minha identidade de gênero formada.

Foi um sentimento que você percebeu de repente ou ao longo do tempo?
Eu sempre admirei minha mãe, o amor materno, então eu me identificava mais com ela e me achava diferente do meu pai que era forte, alto, bonito. Quando fui crescendo, percebi que sentia atração por homens, diferente do que eu “deveria sentir”, que era a atração por mulheres. Na infância, o papai não tinha a mente muito aberta, me vestia de menino.

Aos doze comprei calcinha e sutiã... Aos doze anos, decidi que não era, não me identificava nem me aceitava como travesti, não queria só me vestir como uma, eu me sentia uma mulher, uma fêmea de fato. Foi traumático, passei por constrangimento. Mas o primeiro de tudo, você tem que se aceitar. Assim que você se aceita é mais fácil você driblar o preconceito e se impor.

Thatila Beatriz Gamisch, 1ª transgênero piauiense a fazer cirurgia de mudança de sexo

Para algumas pessoas já é “suficiente” se travestir. Por que você resolveu ir além e fazer a cirurgia?
Há pessoas que se identificam e se aceitam como travesti e se sentem mulher assim. Eu sabia que tinha algo que me faltava. Foi quando procurei me informar e fazer a cirurgia, que fiz em São Paulo.

Por que você decidiu fazer a cirurgia?
O que me deixava frustrada e que não aceitava era o fato de ser mentalmente uma mulher e fisicamente tivesse o detalhe da genitália masculina. Precisava me adequar. Lembrando que não é o corpo que faz a mulher, é a cabeça. Mas era algo que eu precisava fazer. Pode ser que outras pessoas não pensem como eu. É natural, mas tem que respeitar (esse modo de pensar). 

Quando você fez o procedimento e como foi o percurso para conseguí-lo?
Eu tinha 25 anos. É uma cirurgia muito complicada, demorada. Precisa passar por vários laudos clínicos, psiquiátricos e constatar de fato que você se define mesmo como do sexo feminino. O primeiro passo foi buscar informações - porque quando fiz não havia - através de amigas, de médicos, conhecia uma amiga que já tinha feito. Na época, eu tinha uma condição boa. Fiz todos os tratamentos e laudos aqui em Teresina e fui para São Paulo, onde tinha parentes, levei para o cirurgião e fiz particular. A cirurgia no Brasil foi liberada há cerca de vinte anos, mas não é comum. O SUS já liberou, mas são pouquíssimos médicos que fazem.

Como as pessoas do seu círculo social reagiram?
Faz cerca de quinze anos que fiz a cirurgia. Fui a pioneira no Piauí. Por ter sido a precursora, a primeira que correu atrás, deu a cara a tapa, sofri retaliações. Pessoas que disseram que eu não ia conseguir. No entanto, estou aqui, exitosa, satisfeita. Chegaram a dizer que eu ia me suicidar, ficar doida. Mas claro, se você não for aceita em algum lugar, você vai se deprimir. Pode até ter problemas. Mas eu tenho muito apoio no seio familiar, desde pequena. Somos seis filhos, três casais. Meus irmãos sempre me trataram como menina, nunca houve repulsa.

Quanto tempo demorou esse processo de pré e pós-operatório?
Trinta dias, mas médico só libera o ato sexual depois de 60 dias.

O que você sentiu quando se viu pela primeira vez no espelho após a cirurgia?
Me senti completa. É uma satisfação e uma felicidade... me senti completa. Era como se faltasse um pedaço que agora se encaixava.

O preconceito sobre você ainda é muito grande?
Hoje em dia, muitas pessoas que não têm conhecimento, desinformadas e que não querem procurar informação, dizem que eu me mutilei, me castrei, me capei. Isso magoa. Mas eu volto atrás e vejo que são pessoas que não fazem questão de se informar. Até mesmo dentro do segmento LGBT.

Mas isso chega a te abalar muito?
Eu sou uma mulher mais do que as outras até pelos problemas que eu passo porque a sociedade tem muito preconceito com a mulher trans. Porque acham “ela não é uma mulher igual às outras”. Mas a identidade de gênero é uma formação. Você se identifica e procura se encaixar nas normas e nos padrões. Não é preciso nascer uma mulher para se sentir uma mulher, você pode se fazer mulher. O médico me falou “você é uma mulher igual às outras. Não há as mulheres que fizeram histerectomia? Você vai ser uma mulher que também não tem útero. Elas não deixaram de ser mulher”.

Depois da cirurgia, você precisou fazer algum tratamento médico?
Preciso tomar hormônios que faço tratamento por seis meses e os outro seis com vitaminas e complementos. Sou extremamente vaidosa, chego ao extremo. Gosto de fazer as unhas, me depilar, sou dona-de-casa, cozinho, lavo, passo, sou criteriosa quando o assunto é estar bem, minha casa, minha higiene pessoal.

Você fez mais alguma cirurgia?
No começo eu tinha um pouco de receio de ter o pomo-de-Adão grande. Eu me automedicava com hormônios e ele não cresceu muito, então só fiz uma raspagem. Hoje não tenho barba, por conta do tratamento com hormônio. Nos países de primeiro mundo, os pais já percebem as crianças que não se identificam com o seu sexo de nascimento e chegam pra dizer aos pais e dizem “sou menino” ou “sou menina”. Já é um passo para que essas crianças possam se adequar, se aceitarem e se sentirem melhor na sociedade.

Como você se sente hoje?
Sou muito vaidosa, gosto de ter meu sustento, corro atrás, meu marido trabalha, mas eu também. A gente se completa. Hoje sou “Thátila Beatriz” e casada de papel passado.

 

 

Como foi cuidar da parte legal, de seus documentos?
Entrei com processo aqui no Piauí na Vara de Família, por volta do ano de 2003, e gerei jurisprudência para outras que vieram depois, pois nos meus documentos eu sou mulher. Para trocar o gênero tem que fazer a redesignação sexual, para ter na identidade averbado o pré-nome e o gênero.

Depois de tudo o que você fez, o que você acha que falta para as pessoas que não te veem como mulher?
A violência é o não conhecimento, a não disseminação de informações. Os pais não falam sobre sexualidade com seus filhos, identidade de gênero, de respeito. Por isso temos que vir à tona, conversar com a família, vizinhos. Todos nós somos diferentes. O mundo é diverso. Hoje estou secretária executiva do conselho municipal LGBT e a minha motivação é poder socializar informações como uma mulher trans, uma mulher, de fato e de direito. Ajudar outras mulheres trans e travestis a se encontrarem. Porque os há muitos gays e lésbicas se camuflam para driblar o preconceito e se proteger, mas a transexual fica naturalmente mais exposta e vulnerável.

O que você diria para as pessoas que estão passando por problemas por causa do seu próprio gênero?
Só tenho a dizer: se aceite. A partir do momento em que você se aceita, você tem condições de se amar e amar ao próximo. Mas tudo depende, primeiramente, de você. Eu procurei me encontrar, me definir. Quando me encontrei e vi que eu era a Thatila, foi melhor.

As pessoas às vezes não aceitam você como você é, pensam que nasceu no mundo da lua, num outro mundo. Hoje tenho residência em Teresina e fora do Brasil mas procuro ficar aqui que é onde estão minhas raízes, família, gosto muito, tenho muita aceitação. Hoje sou uma mulher de fato e de direito, registrada, documentada.

Thatila 

 

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