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Contabilidade - José Corsino

Normas gerais de licitação: desafios para o poder regulamentar

Inquestionavelmente, a Lei nº 14.133/2021 estabelece, a teor do inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal brasileira de 1988, normas gerais de licitação, cuja competência privativa para legislar é da União: “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III”.

Logo, é certo que, até mesmo à União, compete a edição de normas para além das ditas normas gerais e, por natural decorrência lógica, existe uma margem adjacente, em maior ou menor escala, à competência legislativa privativa da União a que se refere o mencionado artigo 22, XXVIII, da CF/1988.

O ponto inquietante domicilia-se em aprazar, definidamente, as precisas fronteiras do que é uma norma geral de licitação e contrato, maiormente porque, na própria Lei nº 14.133/2021, não há um indicativo preciso sobre esse específico ponto, pelo que, à luz de uma interpretação reducionista linear, tudo pode — ou não — ser interpretado como norma geral, a depender do critério de quem se proponha, destituído de intuito especulativo, decifrar.

É substancial delinear que até mesmo a União extrapola, sem qualquer melindre, os limites do poder regulamentar, a exemplo de toda exposição normativa contida na Instrução Normativa Seges/ME Nº 67, de 8 de julho de 2021, que “institui o Sistema de Dispensa Eletrônica, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional”. Neste característico caso, a União criou, sem autorização legislativa, nova modalidade licitatória (ou combinação das já existentes), notoriamente vedada pela própria Lei nº 14.133/2021 (§ 2º do artigo 28).

Se à União, cuja estrutura funcional é, manifestamente, mais bem aparelhada que a maior parte dos demais entes federativos, por que não pode ser deferido a estes entes o poder normativo de, no mesmo sentido, conduzir o processo licitatório, dentro das margens mínimas fincadas no “núcleo duro” da Lei nº 14.133/2021, conforme suas particularidades?

A resposta ao questionamento acima proposto vem ganhando força pelo país, talvez por extremada necessidade de fazer cumprir a aplicação da lei, não sem maiores exigências, mas por decorrência do pragmatismo um tanto contemplado pelo cenário inaugurado pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), a que a Lei de Licitações e Contratos Administrativos faz expressa referência (parte final do artigo 5º).

Um bom paradigma, mas não o único, está previsto no recentíssimo Decreto nº 45.422/2024, “que altera o § 3º do art. 12 do Decreto nº 44.330/2023, o qual regulamenta a Lei nº 14.133/2021 no âmbito do Distrito Federal”. Segundo o texto recém-editado, “os agentes de contratação, os seus substitutos e o presidente da comissão de contratação serão designados dentre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, podendo, excepcionalmente, mediante justificativa fundamentada da autoridade competente, serem ocupantes exclusivamente de cargos comissionados, na hipótese de que não seja possível designar servidor público efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública com a qualificação necessária ao exercício das funções”.

O mérito do anunciado Decreto sobeja uma simples adequação funcional, tanto porque é onusto por indelével sensatez e adstrição prática, contemplando a máxima de que “ninguém está obrigado a cumprir o impossível (ad impossibilia nemo tenetur)”. E o que é impossível para a Administração Pública? Com escusas à axiomática tautologia (redundante), tudo aquilo que, no momento em que deve ser feito (princípio, dentre outros, da eficiência), não pode ser concretizado na forma prioritariamente — mas não exclusiva — prevista em lei.

O referido decreto distrital, amiúde contemplativo do conteúdo aderente aos princípios da eficiência e efetividade, traduz parte das insuficiências e desafios encontrados na máquina pública, não circunscritos, obviamente, apenas ao Distrito Federal.

Logo, se a um dos mais importantes e bem preparados entes federativos a que a Lei nº 14.133/2021 se submetem é possível ser pragmático, por que não aos demais entes, com estruturas sumamente mais precárias, não se lhes deve estender a prerrogativa de gerir dentro dos limites das ferramentas que se lhes apresentam disponíveis?

Notório, portanto, que, para efetivar a aplicação da Lei nº 14.133/2021 em sua integralidade, parece-nos incontestável que o caminho natural não é sempre segui-la à risca, como se qualquer inflexão à literalidade do texto que nela se encontra inserto possa ser vista como proposital deliberação traçada de tergiversar a ideal (mas nem sempre concretizável) aplicação da lei.

Nem todos os entes federados suportam um agente de contratação!

Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em Administração, sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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