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Contabilidade - José Corsino

Lei Anticorrupção desfaz processo de responsabilização administrativa?

Desventuradamente, ainda persiste, no campo da Administração Pública brasileira, um fatigoso contentamento quanto à aplicação de penalidades em se tratando do Direito Administrativo Sancionador. Sobeja a premissa de que condenar assemelha-se a um poder-dever e não a uma faculdade, cuja discricionariedade — por permitir opção fundamentada em não apenar — é quase sempre vista como desvio de finalidade.

Ao que interessa, no terreno da contratação pública a falta cometida pelo licitante ou contratado, cuja gravidade nem sempre importa, impõe, fidedignamente, uma relação de suserania e vassalagem entre as partes a quem se impõe a relação contratual, possibilitando, a lume da degradação que a norma alvitra, um espeque razoavelmente — ao menos em tese — equânime.

Sucede que aplicar penalidades ao licitante ou contratado, nada obstante a diagramação normativa prevista na Lei nº 14.133/2021, implica em um procedimento ao qual se conectam ambas as partes submetidas ao liame obrigacional, formado ou não em contrato administrativo.

Logo, consagrar penalidade é custoso para a Administração, porque impõe um dever de fundamentação e motivação adequados à subsunção do fato gravoso (causa) à norma, em justificado juízo de proporcionalidade, ao tempo em que se deve franquear, ao potencial apenado, os direitos fundamentais de garantias processuais mínimas — notadamente, contraditório, defesa ampla e devido processo legal -, sem os quais o processo já é, intrinsecamente, eivado de vício.

Tal-qualmente, é difícil para o administrado defender-se, sobretudo quando a ocorrência dos fatos não possibilita nada para além de um juízo de adequação à norma, atenuando a gravidade da sanção a ser aplicada, no desígnio de redução da dureza da própria penalidade.

Por receio — ou mesmo intolerância a um ou outro desvio perpetrado em desfavor das finalidades principiológicas inerentes à função pública (linha de raciocínio que até pode ser considerada legítima) —, quase sempre prepondera a necessidade de apenar, abstraindo-se da faculdade de se submeter à fecunda e auspiciosa política conciliatória, que, com revelado valor, o legislador traçou (em capítulo próprio) na Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

Pragmaticamente, tudo funciona ao arrepio da lei, se por acaso inexistisse uma aspiração normativa em proceder ao concerto — sempre no âmbito da própria Administração Pública (aquela que licita e contrata) —, exercente fiel da função administrativa.

Sistematicamente, nem todo lapso cometido pelo licitante ou contratado pode desaguar em aplicação de penalidades, máxime se mais intensa e penosa.

Logo, avistada a falta — cujo grau de gravidade se desvenda no âmbito do natural processo de aplicação de penalidades (nos termos da Lei de Licitações e Contratos Administrativos) —, deve a ela adequar-se uma sanção, sendo este o caminho natural.

Exceções

As exceções dependem das particularidades do caso em concreto, cuja minudência pode caminhar, até mesmo, para uma composição, sem que, necessariamente, a esta possa ser tributada qualquer complacência por parte da Administração.

A despeito disso, não se deve negar que, a depender da gravidade da conduta, o que transcorre na esfera administrativa pode alcançar outros estágios do Direito Sancionador, inclusive na seara criminal, cujos limites são fincados no — e delimitados pelo — controle externo. Aqui tendes, portanto, que não há inibição para o controle exercido pelo Ministério Público, Tribunais de Contas e Poder Judiciário. Todos têm legitimidade para assim procederem.

No séquito das atribuições (ou competências) que são deferidas ao controle externo laborado, de forma específica (e para o quanto interessa a esse escrito), pelo Ministério Público, despontam algumas preferentemente a outras, destacando-se a ação civil pública por atos de improbidade administrativa, para a proposição da qual a Lei nº 14.230/2021, alterando a Lei nº 8.429/1992, determinou a imperiosa necessidade de demonstração de conduta dolosa, apartando-se da leviana culpa, que, outrora, oportunizava, sem qualquer pejo, manejos infaustos das mais variadas sortes de proposições judiciais.

Tanto que, ocorrendo um fato, no transcorrer do processo de contratação pública (independentemente de já existente ou não o contrato administrativo), o qual possa ser considerado passível de sanção, é dever do controle (interno ou externo) apenar ou, minimamente, instaurar algum procedimento no âmbito do qual possa ser avaliado o contexto fático da conduta hipoteticamente lesiva (lesão em sentido lato).

Diante da (custosa) inevitabilidade de comprovação do dolo para a ação civil pública por atos de improbidade administrativa, o Ministério Público tem se valido da adoção de uma medida judicial muito mais delicada e complexa — a aplicação da Lei nº 12.846/2013, nominada Lei Anticorrupção —, sobre a qual a espoliação valorativa é notória.

Por presumir a responsabilização objetiva, ao Ministério Público parece ser menos dificultoso lastrear-se nas condutas dos incisos do artigo 5º da referida Lei nº 12.846/2013 do que nos atos de improbidade administrativa aludidos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/1992, os quais passaram a requerer, como já pontuado, a demonstração de uma conduta volitiva peremptoriamente dolosa.

Todavia, para além da polêmica quanto à legitimidade de o Ministério Público propor, ao ensejo de tais ações, acordos de leniência (matéria ainda não pacificada), é imprescindível destacar o ponto mais nodal de toda essa discussão, é dizer, a indiscutível subsidiariedade que lhe é conferida, categorizando uma quase escassa (e sempre derradeira) legitimidade ativa.

Isso porque, conforme categórica disposição do caput do artigo 20 da Lei Anticorrupção, a atuação do Ministério Público, ainda que já proposta uma ação, para fins de responsabilização administrativa a que se refere o artigo 6º da mesma lei, depende de uma “constatada omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa”.

Por essa razão, se e somente se houver inconteste omissão da autoridade competente (ou seja, da autoridade administrativa), poderá haver, de forma suplementarmente acessória, a atuação do Ministério Público para fins de atingir as condenações listadas no artigo 6º da Lei Anticorrupção.

À vista disso — e exemplificativamente —, o pleito, pelo Ministério Público, da multa prevista no inciso I do artigo 6º, que pode atingir o estratosférico patamar de até 20% do faturamento bruto do último exercício anterior à instauração do processo administrativo (…), só subsiste na bicondicional latência de todas as variáveis: inexistência de processo de responsabilização administrativa e, também, manifesta omissão da autoridade que licitou ou contratou. Sem um ou outro, o manejo de qualquer lide pelo Ministério Público é inviável, porquanto inepta.

A ausência de legitimidade desponta, de forma imediata, caso não tenha havido qualquer processo administrativo de responsabilização — entenda-se, processo para aplicação de penalidades (artigo 156 da Lei nº 14.133/2021) —, bem assim, independentemente da existência deste, da irrefutável omissão da autoridade competente para promover a responsabilização administrativa.

Considerando que é o agente administrativo (com escusas à autorização metonímica – parte pelo todo), responsável pelo processo de contratação pública, a “autoridade competente para promover o processo de responsabilização administrativa”, não pode o Ministério Público usurpar função administrativa de outro Poder, viciando o Princípio da Separação dos Poderes (de assento constitucional) e dando interpretação evasiva, deliberada e autofágica à Lei nº 12.846/2013.

Assim que, exíguo qualquer manuseio de responsabilização administrativa — que, para o processo de contratação pública, encontra abrigo na prevalência das sanções constantes no artigo 156 da Lei nº 14.133/2021, acima mencionado — não compete ao Ministério Público, inopinadamente e sem nenhuma autorização normativa, propor qualquer tipo de ação judicial visando à condenação de licitantes e contratados nas sanções constantes nos incisos do artigo 6º da Lei Anticorrupção.

Deve-se ressaltar, por fim, que, a despeito da existência de processo pela autoridade competente para promover a responsabilização administrativa, a omissão aludida no caput do artigo 20 da Lei nº 12.846/2013 não decorre apenas da ausência de sanção no âmbito administrativo, mas da justificada omissão da autoridade competente, motivo pelo qual a atuação do Ministério Público, além de derradeira e inteiramente subsidiária, é condicionada a uma sucessividade eventual.

Ao Ministério Público, defere-se muito, mas não se concede tudo. Eis a leveza e dignidade da Constituição Federal Brasileira de 1988.

*Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e bacharel em Administração.