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"Garçom Celebridade" pendura a bandeja após duas semanas de despedidas

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Foram duas semanas cheias de despedidas. As últimas dos 38 anos de uma vida inteira carregando bandejas cheias de cervejas, quibes, esfirras e muitas histórias. Ele se dedicou a isso. Fez como ourives lapidando ouro. E dali esculpiu a sua maior joia: o encantamento e o respeito de toda uma cidade. No sábado, o último dia, ele foi ovacionado por uma multidão que se acostumou a gritar o seu nome há quase quatro décadas.

Cícero Rodrigues dos Santos deixou o ofício como herói. O herói da própria história, num país onde não existem mais heróis. Sem se dar conta, ele começou a escrever essa história ainda no sertão da Paraíba. Foi ali que o camelô ouviu falar de uma terra que prosperava no centro do país. Disseram-lhe que, na capital federal, teria oportunidades. Não pensou duas vezes. Sacolejou quatro dias para chegar aqui. No segundo dia, estava empregado. E nunca mais deixou de carregar uma bandeja.

No sábado, a bandeja entupida de quibes e cervejas ficou meio de lado. Ele não pôde carregá-la. Abraços e beijos foram sua principal ocupação. Uma cidade inteira foi ao Beirute da Asa Sul, onde toda essa história começou, para agradecê-lo. Todo mundo queria cumprimentá-lo. Filas para fotos, filas para um afago, fila para contar uma historinha, lembrar um causo. Para lhe dizer apenas obrigado.

Ele tentou disfarçar a emoção. Houve momentos em que não conseguiu. Os olhos miúdos ficaram umedecidos. Uma vida inteira lhe passou pela cabeça, desde o momento em que embarcou naquele ônibus, lá na Paraíba. A melhor história que ele escreveu aqui estava chegando ao último capítulo. Mas ele segurou bem, até as 2h da madrugada, quando as luzes do velho Beira se apagam. E, no dia seguinte, tudo recomeça.

O bar lotou. Havia gente de todas as tribos e idades. Toda a velha guarda reapareceu. A história de Brasília passou pelo bar. Os principais acontecimentos lotaram suas mesas. Filmes foram rodados ali. Música, manifestações culturais, decisões importantes da capital. Ousadia, choque de comportamento, quebra de tabu, paradigmas e preconceitos, tudo andou por suas mesas de madeira. E Cícero esteve em cada uma delas. “Aqui, eu entendi muita coisa, nada me espanta mais nem causa preconceito. Eu aprendi a respeitar as diferenças, a olhar o outro com respeito e dignidade”, me disse ele, certa vez. Nesse mesmo dia, ele me confidenciou: “O segredo para ser um bom garçom é ouvir e fingir que não ouviu. Ver e logo se esquecer de ter visto. Ser discreto é a alma da profissão de um garçom”.

Liga Tripa

E a 109 Sul ficou lotada. Cada vez chegava mais gente. Mais “órfãos” do Cícero — como a maioria disse se sentir a partir de agora. Vieram famílias inteiras. Três gerações: pai, filho e neto. Todos atendidos pelo mesmo homem que carregou um sonho em cima de uma bandeja. “Vi várias gerações passarem por aqui. É muita história pra contar e lembrar depois”, ele reconhece.

O professor Jorge Nélio, 64, que frequenta o Beirute há 40, também foi dar o último abraço ao amigo. Ao chegar lá e se deparar com toda aquela movimentação, toda a velha guarda do Beira, cutucou, com bom humor: “Até os fantasmas devem ter acordado e vieram aqui hoje, para abraçar o Cícero. Só ele pra fazer isso mesmo”. Jorge Nélio sabe o que diz e participou ativamente de algumas das melhores histórias de Cícero.

Gente chegava. E congestionava o corredor do bar. Todos atrás de Cícero. Nunca lhe pediram para tirar tanta foto como no sábado. De repente, ouve-se um barulho vindo dos fundos. Era música. Muita música. O grupo Liga Tripa invadiu todo o espaço. Foi cantar para o garçom mais famoso da cidade. “Nossa Senhora do Cerrado, protetora dos pedestres, que atravessam o Eixão às 6 horas da tarde, fazei com que eu chegue são e salvo.”

Cícero foi convocado para o centro do bar. Aplausos, berros e assobios para ele. Emocionado, subiu no velho banco de madeira e tentou agradecer tamanha homenagem. A emoção quase não o deixou. Em quase quatro décadas, foi a primeira vez que subiu num desses bancos. O coração do homem de 67 anos bateu forte. Os olhos escondiam as lágrimas. Mas era preciso seguir.

Mais aplausos, mais abraços, mais despedidas. Mais fotos, mais pedidos para que ele não fosse. Ele atendeu um a um. A bochecha ficou com marcas dos batons das meninas, das moças e das muitas senhoras que foram ao Beirute. O público do Cícero é tão diversificado quanto a bandeja que carregou a vida inteira. “Todo mundo tem uma história para contar com ele. Cícero precisa virar verbete”, sugere o bancário Almir Luiz Azevedo, 52 anos.

Gala

Por volta das 18h, ele se retirou do centro do bar. Demorou-se por cerca de 15 minutos e voltou com paletó branco e chapéu. Foi a roupa de gala que o Beirute mandou fazer excepcionalmente para ele. O público, novamente, foi ao delírio. Mais aplausos, mais beijos, mais festa para o lorde Ciço, como muitos o apelidaram, abreviando o seu nome. Até o governador Rodrigo Rollemberg passou por lá para dar o abraço no garçom que também fez parte da sua história.

Novamente, a romaria de fotos para postar nas redes sociais. Em tempo real, claro. Gente reclamando que o sinal das operadoras estava ruim. Gente explicando que devia ser porque havia muito celular sendo usado ali ao mesmo tempo. Até isso Cícero causou: congestionamento irritante nos celulares. Poderoso esse paraibano.

E a noite passou. A madrugada gelada (em torno dos 13ºC) avançou. Cícero ainda tentava disfarçar o cansaço. Foram duas semanas intensas de despedidas — começaram no Beirutinho, na 107 Norte, e terminaram na 109. Duas da madrugada. As luzes do Beirute se apagam. É assim há 40 anos. Cícero tirou o uniforme de gala. Hora de voltar para casa espaçosa e confortável onde mora, no Sol Nascente, em Ceilândia. Hora de a vida seguir diferente do que seguiu nos últimos 38 anos.

Hora de colocar a bermuda e bater perna na Feira de Ceilândia, um dos seus passeios preferidos. Encontrar os conterrâneos no lugar mais nordestino do DF. E fazer tudo sem pressa, sem hora de voltar. Tempo agora para saborear, com calma, os quitutes e a dobradinha feita no capricho pela sua eterna Gilsa, companheira de toda uma vida e mãe dos seus quatro filhos. Hora de se reinventar e cuidar das dores na coluna, motivo pelo qual foi urgente aposentar mais cedo.

E por falar em reinvenção, ele já sabe por onde começar. “Lá em casa, tem um quartinho nos fundos. Lá é que guardo as coisas que não uso mais. Vou quebrar tudo pra consertar de novo”, diz ele, às gargalhadas. E promete, também, de vez em quando, dar uma passadinha pelos dois Beiras. “Pra matar a saudade e rever os amigos.”

Depois de 38 anos, o paraibano que quis vencer na terra de JK saiu de cena condecorado como herói (lá atrás, ele recebeu o título de Cidadão Honorário de Brasília, da Câmara Legislativa). Mas a melhor de todas as condecorações ele ganhou dos amigos, uma gente anônima, nas duas últimas semanas, e mais comovidamente na noite do último sábado.

Carregando bandejas e um sorriso honesto, ele cativou, uma a uma, as pessoas que frequentam o Beirute. No último capítulo dessa longa história, todos os seus amigos foram abraçá-lo. Poucas pessoas conquistaram outras pessoas de uma forma tão excepcional como Cícero.

E também, sem imaginar, ele ensinou a toda uma cidade que, para ser querido de verdade, não precisa ser importante ou transitar pelos poderes que impregnam Brasília. Basta ser humano. Humano de verdade.

Obrigado, Cícero. Uma cidade inteira lhe agradece.

Fonte: Correio Braziliense

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