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Carolina Ferraz interpreta travesti no filme "A glória e a graça"

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“Quem iria me dar esse papel?”, questionava Carolina Ferraz quando, há quase uma década, leu pela primeira vez o roteiro de “A glória e a graça”, assinado por Mikael Albuquerque e Lusa Silvestre. Por isso, não esperou convite algum: comprou os direitos do texto do próprio bolso e entrevistou cerca de 60 travestis para absorver a visão de mundo de quem é frequentemente marginalizado pela sociedade.

Finalmente, em setembro, quatro meses depois de dar à luz a segunda filha e com dez quilos acima do peso, a atriz de 47 anos entrou no set e começou a trabalhar 12 horas por dia.

— Meu rosto carregava quilos de maquiagem, coisa que mal uso. Vesti uma peruca que derretia minha cabeça e meu cérebro, por conta do calor — diz Carolina sobre as gravações, concluídas neste mês, com locações em Santa Teresa, Laranjeiras e no Centro. — Eu queria ter a oportunidade de interpretar alguém muito diferente de mim, apresentar ao público a complexidade de ser ator, o quanto é difícil se comprometer.

No longa-metragem de Flávio Ramos Tambellini (de “Malu de bicicleta”, de 2010, e “Bufo & Spallanzani”, de 2001), previsto para entrar em cartaz em agosto do próximo ano, Carolina vive Glória, uma travesti dona de um restaurante no Rio que passa a cuidar dos sobrinhos depois de a irmã, Graça (Sandra Corveloni), descobrir que possui uma doença terminal. As duas não mantinham contato havia 13 anos, quando Glória ainda era Luiz Carlos.

ELENCO CONTA COM TRANSGÊNEROS

Segundo o diretor e a atriz, um dos principais objetivos da obra é tirar a transgeneridade do clichê e do estereótipo, e retratar sua protagonista como um ser humano bem-sucedido.

— A representação do transgênero no audiovisual quase nunca é realista. Ou é cômica, ou muito caricata. A gente se preocupou em construir uma pessoa — diz Carolina, que, para compor a personagem, recebeu a ajuda dos preparadores de elenco Chris Duvoort e Marina Medeiros, ambos de “Ensaio sobre a cegueira” (2008), de Fernando Meirelles.

Para não cometer deslizes na abordagem de um tema tão sensível, a equipe encontrou-se com associações de transgêneros e buscou conselhos de ativistas.

— Pesquisei muito. Existem mais de 40 tipos de travestis e transexuais — diz Tambellini, que já havia dirigido Carolina em “O passageiro: Segredos de adulto” (2006). — É claro que existe uma ligação forte entre travestis e prostituição, mas não é só isso. Hoje há um movimento mundial na arte para humanizar essas pessoas, como vimos em “Transparent” e no filme “A garota dinamarquesa” — completa ele, em referência à série vencedora do Globo de Ouro e ao drama histórico ainda inédito de Tom Hopper, em que Eddie Redmayne dá vida ao primeiro homem a realizar uma cirurgia de mudança de sexo.

Os dois exemplos citados pelo cineasta, contudo, não ficaram imunes a críticas. Há tempos, a comunidade LGBT ataca Hollywood por contar histórias de transgêneros através de atores cis — termo atribuído às pessoas que se identificam com o gênero do seu nascimento. O argumento é que, ao mesmo tempo em que essas produções, em tese, apoiam a diversidade, também promovem uma exclusão, já que não contratam intérpretes cuja condição reflita a que está sendo reproduzida nas telas.

Mas Carolina Ferraz e Tambellini descartam a hipótese de “A glória...” provocar polêmica semelhante. Alegam que parte do elenco é composta por transgêneros, incluindo a modelo e atriz transexual Carol Marra, que terá um papel importante na trama.

— No caso da escalação da Carolina Ferraz, foi simplesmente uma questão de ela ser compatível com a personagem e experiente na área — defende Tambellini. — E foi uma escolha perfeita, não consigo imaginar ninguém mais nesse papel.

Orçado em R$ 4 milhões, “A glória e a graça” precisou enfrentar o conservadorismo para sair do papel. Empresas privadas, por exemplo, inicialmente se recusaram a fornecer financiamento, com medo de associar suas imagens ao projeto.

O preconceito foi sendo vencido ao longo dos anos, conta o diretor — mesmo que, num panorama mais amplo, um grande caminho ainda precise ser percorrido. No fim de setembro, bem no começo das gravações, a comissão especial que discute o Estatuto da Família na Câmara dos Deputados aprovou o projeto que define a instituição familiar apenas como aquela em que há união entre homem e mulher, desconsiderando mães ou pais solteiros, casais gays e, evidentemente, a composição retratada no longa.

— O filme fala de uma travesti que assume o papel da irmã que está morrendo. Isso não é uma família? O assunto tem que ser discutido. Existe uma onda de conservadorismo, em geral, no Brasil — avalia Tambellini.

— É uma realidade mais próxima do que imaginamos. As famílias modernas são misturadas — completa Carolina. — A gente só quis contar uma história honesta, de amor, sobre o resgate da relação de duas irmãs que se amam.

Fonte: O Globo

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