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A violência no Rio não rouba apenas o futuro. Rouba sonhos

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A dor da família no enterro da menina Emily, morta por bandidos numa tentativa de assalto em Anchieta. Foto: Domingos Peixoto

Morre uma criança e, com ela, sonhos. Com Jeremias, morreram um missionário e um professor de música. Com Maria Eduarda, uma jogadora de basquete com carreira internacional. Fernanda até realizou o desejo de ser princesa, mas não o de se tornar veterinária. Eduardo, que queria ser herói, jamais será bombeiro. Vanessa não chegou às passarelas. Nem Renan nem Fernando, aos gramados. Aos 65 anos, o sonho de Anderson ver o filho Vitor advogado foi enterrado. Com o bebê Arthur, baleado ainda no útero, morreu o sonho de Claudineia de ser mãe. Um desejo que Herica realizou por dois anos e meio, até que uma bala atingiu Sofia num parquinho. Já o sonho de Maria Auxiliadora lhe foi arrancado anteontem, quando a filha Emily morreu baleada, aos 3 anos.

Desejos, carreiras, sonhos diferentes se perdem com a violência. Mas a dor das famílias é a mesma. De 2017 para cá, pelo menos 14 crianças e adolescentes foram mortos vítimas de assaltos e balas perdidas. O que elas fizeram de errado? Estavam dentro da escola, brincando no terraço e no quintal de casa, sentadas no sofá jogando videogame, indo na sorveteria, passeando com os pais. Elas estavam sendo crianças.

— Eduardo era uma criança muito inteligente, sempre falava que a profissão de bombeiro era muito bonita. Queria ser herói, mas não conseguiu realizar o sonho dele. Estamos perdendo nossas crianças estupidamente. Estamos perdendo nosso futuro e nada muda nesta política e segurança — disse Célia Lopes, de 55 anos, tia do menino Eduardo, morto aos 10 anos, em dezembro do ano passado quando bandidos passaram atirando num dos acessos ao Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho, na Zona Norte.


Emily, de 3 anos, foi baleada dentro do carro quando a família voltava de uma lanchonete. Foto: Reprodução

Nesta quarta-feira, quando o caixão de Emily, de 3 anos, foi fechado, sua mãe Maria Auxiliadora da Silva, de 21 anos, se calou. Mas o pai conseguiu forças para expressar a dor da família:

— Nada vai me trazer ela de volta, então só me resta pedir justiça — disse Cristian da Silva Neves, de 21 anos.

A criança foi baleada numa tentativa de assalto, anteontem, em Anchieta. Ela voltava de carro de uma lanchonete com a mãe e o padastro.

‘Acabaram com a vida da minha filha e com a minha’

Menina sonhadora. A definição estava no fundo de tela do celular de Maria Eduarda, de 13 anos, morta baleada no pátio de uma escola municipal no Complexo da Pedreira, na Zona Norte, em março de 2017,durante tiroteio entre PMs e bandidos. Os sonhos eram muitos. E grandes. O maior deles, o de conquistar as quadras pelo mundo.

— Minha filha era tão dedicada. Aos estudos, ao esporte, a tudo. Queria virar jogadora de basquete e para isso, começou a treinar. Acabaram com a vida da minha filha e com a minha. Estou sobrevivendo — emociona-se Rosilene Alves Ferreira.

No enterro da filha Vanessa, morta aos 10 anos em julho do ano passado, durante um confronto entre PMs e traficantes no Lins de Vasconcelos, na Zona Norte, o pedreiro Leandro Matos, de 39 anos, fez um desabafo:

— Nunca vi tanta morte de inocente e de policial. Não estou defendendo bandido, estou defendendo vidas.


Maria Eduarda foi morta na escola e sonhava ser jogadora de basquete Foto: reproduição

‘Jeremias era um garoto de ouro’

Jeremias Moraes, de 13 anos, não gostava de matar aula. E se estava no meio da Rua Tancredo Neves, na tarde de segunda-feira, onde encontrou a morte durante um tiroteio entre policiais e bandidos, foi porque sua escola, o Ciep Hélio Smidt, fechara as portas, ainda pela manhã, em razão de uma operação policial no Complexo da Maré.

Ao todo, 40 escolas da região adiaram o início do ano letivo por motivo de segurança. O menino participava de uma pelada quando começou o tiroteio, pouco depois das 14h. Tentou buscar refúgio na casa de um amigo, mas não chegou a tempo. De acordo com o laudo da necrópsia, ele estava de perfil quando foi atingido no tórax. A bala atravessou seu corpo de lado a lado. Foi socorrido, mas já chegou sem vida ao Hospital municipal Souza Aguiar, no Centro.

Ser jogador de futebol era um sonho de Jeremias. Mas não o único. O jovem queria se tornar músico, pretendia aprender línguas estrangeiras e almejava um dia ser missionário. Desde que foi batizado na Assembleia de Deus Ministério do Leblon, na Maré, há seis meses, nunca faltou a um culto. Apesar da pouca idade, fazia jejuns e acordava de madrugada para rezar. Localizado a poucos metros de onde ocorreu o crime, o templo onde ele encontrou sentido na vida espiritual foi o mesmo que abrigou seu velório, na noite de quarta-feira. O enterro está marcado para esta quinta-feira, às 11h, no cemitério da Cacuia, na Ilha do Governador.


Jeremias foi morto aos 13 anos, baleado no Complexo da Maré, durante um confronto. Foto: reprodução

— Era um garoto de ouro, amado por todos. Tinha um futuro brilhante pela frente. Sonhava ser jogador de futebol e, entre outros projetos, queria ser missionário. Tinha essa vontade no coração, de conhecer mais as coisas de Deus. Um garoto especial, uma grande perda para nós — lamentou o pastor Adelson Galdino, que acompanhou parentes, nesta quarta-feira, no Insituto Médico-Legal.

Nascido e criado na comunidade Nova Holanda, Jeremias aprendeu cedo a ser responsável. Mais velho de cinco filhos, via-se obrigado a tomar conta dos irmãos quando os pais — um ajudante de pedreiro e uma auxiliar de serviços gerais — estavam no trabalho. Ainda assim, arrumava tempo para desenvolver novas habilidades. Para isso, sempre que podia se inscrevia em oficinas oferecidas pelas ONGs Redes da Maré e Luta Pela Paz, que atuam na região.

O projeto mais recente do qual ele participou foi o Mão na Lata, no qual aprendeu a técnica de fotografia pinhole — que consiste em criar uma máquina fotográfica sem lente, feita de lata. Jeremias tinha sede de conhecimento. Certa vez, pediu para participar de uma oficina de reforço escolar, mas foi impedido por ter boas notas na escola.

— Ele tinha um desenvolvimento escolar bom, então não havia necessidade de fazer aulas de reforço escolar. Mas ele queria participar porque gostava de estudar. Era um jovem muito interessado. Circulava bastante pelos projetos sociais da Nova Holanda — conta Lidiane Malanquini, coordenadora da área de Segurança Pública da Redes da Maré.

Decidido a aprender a tocar violão, mas sem dinheiro para pagar um professor de música, o jovem decidiu pedir ajuda ao pastor. Em troca, poderia tocar nos cultos. Na segunda-feira, um dia antes de morrer, teve sua primeira e última aula de violão.

A mãe de Jeremias, Vânia de Moraes, de 39 anos, estava no velório de um amigo, na tarde de terça-feira, quando recebeu a notícia de que o filho havia sido baleado. Em um relato emocionado, em frente ao Hospital Souza Aguiar, ela falou sobre os sonhos do filho e contou que ele se preparava para iniciar os cursos de inglês e espanhol.

— Deus me deu cinco filhos, agora só tenho quatro. Eu sei que muitas mães estão passando por isso hoje, mas é uma dor de arrebentar a alma acordar e não ter meu filho — disse Vânia.

Criança baleada luta pela vida em hospital

No fim da noite desta quarta-feira, mais uma criança foi vítima de bala perdida no Rio. João Pedro Soares da Costa, de 4 anos, foi atingido nas costas na Favela da Linha, no bairro Rio do Ouro, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. O menino foi socorrido pelos seus próprios parentes e levado ao Hospital Estadual Alberto Torres, no Colubandê, onde passou por uma cirurgia. O garoto foi encaminhado para o CTI pediátrico da unidade e seu estado de saúde era considerado grave na noite de quarta-feira.

De acordo com informações da Polícia Militar, não havia operação policial na comunidade no momento em que o garoto foi atingido. Ainda segundo a PM, João Pedro foi baleado enquanto andava com o pai pela Avenida Dakar. Um veículo teria entrado na comunidade com faróis desligados e janelas fechadas. Criminosos que controlam o tráfico de drogas na região teriam se assustado e dispararam na direção do carro. O menino, que é morador da comunidade, foi então atingido.

 

Fonte: Extra 
Escrito por Carolina Heringer, Flávia Junqueira e Pedro Zuazo

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