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Bebida alcoólica e direção: a irresponsabilidade que mata e destrói sonhos

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Por Izabella Pimentel
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“Parte de mim também morreu naquele acidente”. Este é o sentimento do jornalista e artista Jader Damasceno, jovem que sofreu um dos acidentes de trânsito que mais causou comoção popular em Teresina. Era junho de 2016 quando ele, Francisco das Chagas Junior e seu irmão Bruno Queiróz, foram vítimas da imprudência de um condutor alcoolizado.  Eles saiam do Parque da Cidadania, na Avenida Miguel Rosa, quando o Fusca em que estavam foi colidido violentamente por um Corolla. 

Laudo pericial realizado no dia do acidente confirmou que o condutor do Corolla dirigia sob efeito de bebida alcoólica, caracterizando "embriaguez aguda". Os irmãos Francisco das Chagas Junior e Bruno Queiróz morreram. Jader sobreviveu àquela batida, mas não tem dúvida de que parte do que ele foi um dia morreu junto com seus amigos. 

 “Não foi só meus amigos que morreram porque parte da minha história eu tive que esquecer para poder começar de novo. Tive que voltar a viver a partir de uma  estaca que eu achava que não podia acontecer. Tudo mudou na minha vida. Mas as mudanças mais radicais foram as minhas limitações. Tive que reaprender a caminhar, a respirar novamente, foi muito difícil. Aprender a ouvir com a minha limitação auditiva. A perda parcial da minha visão direita. É muito complicado carregar essa dores”, conta Jader Damasceno. 

Naquele dia, Jader, Bruno e Junior tinham acabado de sair do recém-inaugurado quiosque do Salve Rainha, importante movimento cultural idealizado por Junior. “Era um novo ciclo do Salve. A gente imaginava dias melhores para essa cidade, uma Teresina melhor, mais receptiva, que produz arte”, lembra.

Bruno Queiróz, Jader Dasmasceno e Francisco das Chagas Junior. Foto: Reprodução/Facebook

Laudo comprova embriaguez aguda do condutor do Corolla

É chamado de acidente, mas o que aconteceu com Jader, Junior e Bruno não é nada imprevisto. Campanhas de educação no trânsito a todo o momento destacam que álcool e direção é uma mistura letal e que improvável é não causar problemas no trânsito após ingerir bebida alcoólica. 

“Sei que não posso mandar nas pessoas, mas sempre tento alertar porque nunca vai fazer bem. Álcool e direção são duas coisas que realmente não devem ser misturadas. Um copo, meio copo, não importa, sempre vai deixar alguma limitação no condutor que ingere a bebida. Continuo achando que não posso mandar nas pessoas, mas sempre que posso aconselho a não misturar porque nunca vai ter um bom resultado. Não existe meio buraco. Se você bebeu, você aceita a possibilidade de se machucar  e machucar alguém ou, na pior da hipóteses, matar uma pessoa”, alerta Jader.

Quase 400 autuados na Lei Seca

As estatísticas confirmam que álcool e direção não combinam. Neste ano a aplicação da Lei 17.705, a popular Lei Seca, completou 10 anos de sanção e a cada ano as políticas de conscientização e combate às infrações no trânsito são intensificadas em Teresina. 

Uma destas políticas é a blitz Todos pelo Trânsito, ação conjunta da Superintendência Municipal de Trânsito (Strans) com órgãos de trânsito que visa conscientizar condutores que desrespeitam a Código de Trânsito Brasileiro. 

Dados do setor de operações e fiscalizações da Strans revelam que de janeiro de 2017 a agosto deste ano 391 condutores foram autuados na Lei Seca somente em blitzen realizadas pela superintendência aos finais de semana em Teresina.  O coronel Jaime Oliveira, diretor de Operação e Fiscalizações da Strans, conta que o perfil  dos autuados é jovens de classe média alta e homens. A maior ocorrência de condutor que dirige embriagado é na zona Leste da capital. 

Coronel Jaime Oliveira analisa dados das operações da Strans. Foto: Wilson Filho/Cidadeverde.com 

O diretor explica que há diferença nas autuações de infrações e crimes, conforme o teor de álcool registrado pelo teste do bafômetro. Existe a embriaguez administrativa, que causa infração, e a embriaguez considerada crime flagrante delito. A autuação vai depender do teor alcoólico presente no organismo do condutor.

“Até 0,06mg é considerado infração, embriaguez administrativa. Neste caso é feita lavratura da penalidade com aplicação de multa e recolhimento no Carteira de Habilitação para o Detran para que a CNH do autuado seja suspensa por 1 a 12 meses”, explica o coronel. 

Caso o condutor autuado tenha teor alcoólico superior a 0,36mg, além de infração de natureza gravíssima, ele cometeu  um crime. “Além do que ocorre na embriaguez administrativa, a multa desse condutor tem fator multiplicador e ele é conduzido à Central de Flagrantes”, explica o diretor de Fiscalização. 

Coronel Jaime ressalta que é preciso que os órgãos de trânsito entrem em harmonia para que os condutores autuados nas blitzen sejam condenados e tenham o direito de dirigir suspenso. O Cidadeverde.com tentou saber do Detran-PI quantos condutores autuados tiveram a Carteira Nacional de Habilitação suspensa nos últimos dois anos, mas até a publicação desta reportagem não obteve resposta. O diretor critica a “morosidade” destes processos. 

“Mesmo com o endurecimento das leis, precisamos dar respostas mais céleres, afim de que essas pessoas sejam mais penalizadas à luz do código brasileiro de transito e à luz da legislação”, reconhece o diretor da Strans.

Carro se transforma em arma 

Fazendo analogia para dar ênfase aos riscos de se dirigir embriagado, o diretor de Fiscalização da Strans defende que um veículo automotor se transforma em uma arma na mão de condutores que fizeram uso de bebida alcoólica. Os acidentes de trânsito acontecem com mais frequência e são mais graves quando o álcool está presente. 

“Qualquer pessoa que conduz um veículo embriagado está assumindo riscos”, afirma o diretor Jaime.

De acordo com o Mapa de Acidentes de Trânsito Atendidos em Hospitais de Teresina ,somando os dados de  2016 e 2017 mais de 22 mil pessoas deram entrada nas unidades de saúde da capital vítimas de acidentes de trânsito. Destas, 5.278 foram pacientes com ferimentos graves. 

Não é possível relacionar quais destes pacientes ingeriram bebida alcoólica e conduziram veículo automotor nem quantos foram vítimas da ação imprudente de um condutor embriagado. No entanto, de acordo com o neurologista Daniel França, coordenador de Neurocirurgia do Hospital Getúlio Vargas,  pesquisas comprovam que a ingestão de álcool está diretamente relacionada à gravidade de traumas sofridos em acidentes de trânsito. 

 “Há uma farta documentação científica que comprova que, conforme aumenta a concentração de álcool no sangue diminui a frequência de traumatismo leve e aumenta a incidência de traumatismo grave. Há uma relação direta entre a alcoolemia e traumatismos, especialmente os motivados por acidentes de trânsito”, afirma o médico.

Álcool afeta percepção da realidade

O neurologista Daniel França explica que o álcool diminui a capacidade dos condutores dirigirem de três principais formas: afeta a capacidade de controle de movimento, o reflexo e a interpretação do que está acontecendo na realidade. As condições psicomotoras ficam comprometidas e o condutor não é capaz de agir com discernimento.

“Afeta a capacidade de você controlar seus movimentos e afeta o reflexo. Mas nem de longe o comprometimento do reflexo é a principal determinante do distúrbio que o álcool provoca na direção. Os maiores são: alteração na capacidade de julgamento. Uma situação em que cidadão sóbrio julgaria perigosa, o cidadão bêbado não tem a mesma capacidade de julgamento e pode julgá-la banal. Então uma velocidade que o cidadão acha que poderia ser perigosa, o bêbado já não considera tão perigosa assim. A terceira é a alteração da capacidade de se submeter a regras. A primeira coisa para se ter um trânsito seguro é obedecer regras estabelecidas”, explica o médico.

O neurologista ressalta que mesmo doses baixas de bebida alcoólica são capazes de prejudicar a capacidade de uma pessoa conduzir um veículo automotor porque cada organismo reage de uma forma peculiar à ingestão de álcool. 

“Pequena quantidades de álcool podem alterar percepção de realidade e capacidade dos reflexos porque há uma suscetibilidade individual”, esclarece. 

Beber e dirigir é cultural

Foto: Wilson Filho/Cidadeverde.com 

Dados da Vigitel 2017, do Ministério da Saúde, revelam que Teresina ocupa a 4º colocação no ranking das capitais brasileiras onde homens mais admitem conduzir veículo automotor após ingerir bebida alcoólica. As maiores frequências foram observadas, em Palmas (26,3%), Florianópolis (24,3%), Cuiabá (22,5%) e Teresina (20%).  

A gerente de Educação no Trânsito da Strans e psicóloga, Samyra Motta, observa que a atitude de beber álcool e dirigir é algo cultural não só no Piauí, mas em todo Brasil. “É comum ver a pessoas saindo de uma mesa de bar e indo para seus veículos. Ninguém se choca”, pondera Samyra.

Para ela, essa prática é resultado da falta de educação no trânsito. Pensando nisso, a Strans realiza ações educativas em escolas municipais infantis. “As crianças serão os condutores de amanhã e com certeza serão melhores do que nós, se essa consciência iniciar desde cedo”, acredita a gerente. Para alunos "mais velhos" são ministradas palestras sobre trânsito seguro. As ações dão resultado porque em muitos casos os filhos repreendem os pais quando estes cometem infrações.

“O problema maior da imprudência é que você pode matar pessoas que não tem nada a ver. No trânsito você tem que respeitar seu espaço e o espaço do próximo. A gente vê a pessoas bebendo em uma mesa e elas saem dirigindo. Esse motorista é muito egoísta. Existem outras alternativas”, analisa Samyra. 

Mas há exceções para o egoísmo e imprudência no trânsito. A jornalista Shaianna Araújo e seu marido, Daniel Ferreira, por exemplo, não dirigem caso tenham ingerido bebida alcoólica. Quando decidem tomar “uma cerveja”, optam por transportes alternativos. 

“Nós adotamos essa regra de nunca dirigir veiculo automotor após beber por uma  questão de respeito não só a lei, mas às pessoas também e aos outros condutores. Para não expor a gente, nem as outras pessoas a riscos desnecessários até porque hoje se tem várias opções de transporte que são práticas e todo mundo ganha em segurança”, conta Shaianna.

O tecnólogo em processo gerenciais, Rodrigo Correia, também age da mesma forma. No caso dele, foi preciso haver uma situação grave para que pudesse mudar de prática.  “Na única vez que bebi e dirigi eu cochilei e quase bato em um poste. Foi de repente. Desde esse dia nunca mais faço isso”, garante Rodrigo.

Do luto à luta 

No próximo dia 4 de dezembro irá completar dois anos que a técnica em Enfermagem Raimunda Ferreira Nery perdeu a filha Milena Amanda Nery em um acidente de trânsito na BR-343, em Teresina. 

Milena estava com o noivo no carro HB20 quando um veículo Linea colidiu frontalmente neles. Depoimentos de pessoas que estavam no Linea afirmam que o condutor ingeriu “bastante” bebida alcoólica no dia do acidente. Os ocupantes dos carros contam que o motorista fazia “zigue-zague” na pista.

Milena morreu aos 24 anos e foi impedida de realizar o sonho de ser policial. Ela havia passado em um concurso público, mas faleceu antes de iniciar as etapas de formação. Quando soube da morte da filha, Raimunda conta que tudo na sua vida “se perdeu como uma fumaça”.

“Até hoje eu sinto essa dor, eu sinto esse vazio no peito. Milena era uma jovem cheia de vida, de objetivos. Conquistava um sonho de cada vez. Todo dia eu peço a Deus conforto”, conta Raimunda. 

A mãe da Milena fez do luto uma luta. Nas redes sociais ela criou a página “Campanha contra a violência no trânsito”, onde faz publicações sobre os riscos das atitudes de quem desrespeita às leis de trânsito.  São publicados vídeos e fotos que mostram como excesso de velocidade, não uso de cinto de segurança, mistura de álcool e direção causam consequência graves e são fatores de risco. 

Veja página da campanha  https://www.facebook.com/campanhacontraviolenciatransito/?ref=br_rs


 

“Eu tenho todo dia vontade de falar isso, não por vingança, mas por justiça. Mostrar para as pessoas que misturar álcool e a direção causa tragédia, causa dor não só para pessoa que se foi, mas para as que ficaram. Desde que Milena faleceu a gente trabalha com campanha de conscientização. É isso que me faz viver, ter força para conscientizar as pessoas. É uma forma de extravasar esse sentimento de tristeza. Minha dor se transformou em luta”, revela Raimunda. 

Milena e seus familiares durante passeio. Foto: arquivo pessoal

Na campanha a mãe da Milena destaca que álcool, direção, morte e dor é um “ciclo vicioso” e que falta educação nos condutores. ?

“Não podemos achar isso normal. Quando você bebe e dirige você é consciente que pode morrer ou matar alguém. A gente precisa ficar o tempo todo lutando contra isso. Isso não é natural. Não é natural perder quem se ama. As leis estão aí mais endurecidas, mas falta a conscientização. As pessoas precisam valorizar a vida”, alerta. 

No dia 4 de dezembro (terça-feira), às 10h, Raimunda, amigos e outros familiares de Milena realizarão panfletagem na Avenida Principal do Dirceu a fim de conscientizar motoristas. No mesmo dia uma missa será celebrada para marcar os dois anos de morte da Milena. 

“Milena deixou legado de força e determinação. Eu aprendi muito mais com ela e é por isso que faço isso”,finaliza.

 

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