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Consciência negra é uma luta diária, afirma pensador quilombola sobre o 20 de Novembro

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Foto: Cláudio Costa

"Esse dia é uma demarcação de espaço político, uma demarcação dentro de um processo histórico, mas a consciência negra é todo dia". A provocação é de Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, uma das principais vozes do pensamento quilombola do Brasil.  Morador do Quilombo Saco do Cortume, em São João do Piauí, o poeta e ativista é referência nacional e internacional na defesa das comunidades tradicionais.  

Com a sinceridade que marca sua trajetória, e sempre com respostas incisivas, Nêgo Bispo conversou com o Cidadeverde.com sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado neste sábado, 20 de novembro. Para ele, apesar de importante, a data não reflete necessariamente as lutas enfrentadas pelos negros no Brasil. 

“É um espaço dentro da institucionalidade, mas o que interessa pra nós é a luta de cada dia. O que interessa é que o nosso modo de vida seja respeitado”, destaca ativista piauiense, ao lembrar que a Lei Áurea, assinada em 1988, acabou com a escravidão, mas não com o processo de invisibilização do povo negro no Brasil.
 
O Dia da Consciência Negra no Brasil coincide com a data atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, considerado um dos maiores líderes da luta pela libertação do sistema escravista vigente no Brasil até o final do século XIX. 

A data também é marcada por reflexões sobre o combate ao racismo, desigualdade social e debates sobre a baixa participação de negros em espaços de poder, seja cargos públicos ou na iniciativa privada. 

Sobre essa ocupação de espaços, tão debatida no mês de novembro, Nêgo Bispo faz um alerta: “Há uma grande contradição. Tem pessoas negras que acham que precisam ocupar esses espaços para se empoderar, para se fortalecer, e acabam fazendo as mesmas práticas que os colonialistas fazem. É importante o povo negro entrar no estado para saquear, nem que seja pelas vias ditas legais” avalia. 

Foto: Cláudio Costa

As teses defendidas por Nêgo Bispo encontram eco e repercutem para além dos limites da comunidade quilombola Saco do Cortume. Hoje, o poeta e ativista interage e ministra aulas para algumas das mais importantes universidades do Brasil. 

Na pandemia, a atuação do piauiense ganhou as plataformas digitais, através das lives realizadas por instituições e grupos que também atuam na defesa dos povos tradicionais e no combate às desigualdades. 

Números confirmam desigualdade no Piauí 

A luta de Nêgo Bispo e de outros nomes que atuam no movimento negro do Piauí pode ser justificada através de números, que comprovam que, apesar dos avanços, a desigualdade ainda é algo presente no Piauí, assim como em todo o Brasil. 

Dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizada pelo IBGE, mostram que oito em cada 10 piauienses se autodeclaram pretos ou pardos, mais precisamente, 80,8% dos cerca 3,2 milhões de habitantes do Estado.

Como maioria da população, os negros e pardos também são destaque em indicadores preocupantes no Piauí. Um exemplo dessa realidade é a taxa de desemprego, que em 2019 foi de 12,4% para a população de negros e pardos, enquanto para a população branca foi de 10,4%. 

Quando a questão diz respeito aos rendimentos mensais, a diferença entre pretos e brancos no Piauí fica ainda mais evidente.  De acordo com o IBGE, em 2019, o rendimento médio real do trabalho principal recebido por mês pela população preta ou parda era de R$ 1.153, enquanto para a população branca era de R$ 1.809. 

Ainda segundo a PNAD de 2019, entre os 10% da população com menor rendimento no Piauí, 12,3 % eram brancos e 87,3% eram pretos ou pardos. 

Para a professora da Universidade Estadual do Piauí, Iraneide Soares, doutora em História Social, indicadores como os do IBGE refletem o chamado racismo estrutural. 

“É esse racismo que está arraigado em todas as estruturas sociais e que, no cotidiano, as pessoas naturalizam a inexistência dos sujeitos sociais negros nos espaços de poder, nos espaços de mando, e, consequentemente, isso vai se perpetuando de geração em geração”, explica a professora. 

Vidas Negras Importam

Para Assunção Aguiar, militante do movimento negro e coordenadora de igualdade racial do governo do Estado, datas como o dia da Consciência Negra precisam mobilizar a sociedade para uma reflexão sobre a realidade de quem, apesar dos avanços, ainda é marginalizado. 

Ela faz referência ao termo ‘Vidas Negras Importam’ (Blacks Lives Matter), que ganhou o mundo em protestos contra a violência policial direcionada às pessoas negras, após o assassinato de George Floyd, em maio do ano passado.  

 

Foto: Roberta Aline/Cidadeverde.com 

“Não é só um clichê dizer que ‘vidas negras importam’. A nossas vidam precisam importar, porque somos nós que estamos morrendo mais e mais nesse país, porque o racismo é um projeto estruturante. Nós precisamos dizer para a sociedade que nós contribuímos para a construção do Brasil, e a gente quer usufruir dessa riqueza, e a vida faz parte dessa grande riqueza”, defende Assunção Aguiar. 

 


Natanael Souza e Nataniel Lima 
[email protected] 

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