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Presa por engano no Enem alerta sobre racismo e diz que empatia a salvou

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Por Graciane Sousa
Fotos Roberta Aline

Quanto custa não ser ouvido? para a estudante universitária Maria da Penha isso tem um valor incalculável e tem custado uma vida inteira construída na retidão e que, mesmo assim, aos poucos está sendo reconstruída após ser vítima de um erro que resultou em sua prisão durante o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em novembro deste ano, a cearense que mora em Teresina foi confundida com uma procurada pela Justiça e ficou quase 24 horas presa, inclusive, chegou a ser algemada. Ao Cidadeverde.com, ela disse que a situação chegou ao extremo por ser pobre e negra e contou que só foi salva graças a empatia de pessoas do bem, em especial a juíza que, não apenas parou para ouvir, mas dedicou quase 3 horas a escutá-la e assim reconhecer o erro e, baseada em provas, colocá-la em liberdade. 

Maria da Penha relembra que foi surpreendida minutos antes do início da prova do Enem e não tinha ideia de que sairia dali presa. Antes de ser colocada na viatura, ela conta que logo percebeu o erro, pois o nome do pai da procurada pela Justiça era diferente do nome do seu pai. Ela disse que argumentou e chamou atenção para o erro, mas não foi ouvida. 

"Demorei um pouco a entender, mas de cara percebi que aquela pessoa que procuravam não era eu. Expliquei todos os motivos! a pessoa que estavam procurando era acusada em um crime em 2001 e o mandado era de 2018. Um dos fatos que aleguei é que esse ano foi justamente quando eu entrei na Universidade Federal do Piauí (Ufpi) e tenho tudo comprovado. Além disso, eu faço Enem todos anos, já fui mesária nas eleições. Insisti que não era eu", conta a estudante que curso de Ciências da Natureza, na Ufpi. 

Para Maria da Penha, as provas da sua inocência eram claras e a situação poderia ter sido rapidamente desfeita. Mesmo assim, ela conta que foi constestada e sentiu o preconceito pela cor da pele.

"Foi por isso que eu trouxe essa situação para o âmbito do racismo, da pessoa negra, da mulher negra. O nome do pai da procurada era diferente do nome meu pai. Mesmo falando isso fui contestada e não ligaram para o que eu tinha dito. Foi aí que achei que fui vítima de preconceito, por afirmarem que o nome estava diferente devido a um erro de digitação. Quer dizer que o nome do meu podia estar errado e os outros dados também não poderiam? se eu fosse uma pessoa branca teriam persistido nisso? fui vista como uma bandida sem averiguarem as provas. Acredito que isso está atrelado ao negro, à negra, desde muito tempo. O momento mais difícil foi não ser ouvida e acabar em uma cela minúscula, quente, mal cheirosa", contou emocionada Penha. 

"POBRE E NEGRO É CULPADO ATÉ QUE SE PROVE O CONTRÁRIO"

A estudante, que trabalha como vendedora autônoma de plantas, relembra a noite que passou na Central de Flagrantes sem contato com a família. Para ela, a fé em Deus foi essencial para mantê-la forte. 

"A lei diz que todos os seres humanos são inocentes até que se prove o contrário. Ali eu vi que isso não vale. Pelo menos em se tratando de pessoas pobres e negras, pois você é culpado até que se prove o contrário. Você tem que lutar. Para colocar um inocente na cadeia não tem dia, mas para tirar é uma burocracia", disse a estudante que passou a carregar consigo a seguinte frase: 

"Quando tudo parecer difícil, sem saída, ainda que todos os seus direitos sejam privados, a sua armadura está dentro de você, só precisa trazer ela pra fora porque sua armadura é Deus. Ele está dentro de você. Deixe Ele agir!".

 

SENSIBILIDADE FAZ A DIFERENÇA

Emocionada, Maria da Penha diz que o erro só começou a ser reconhecido durante audiência de custódia, um dia após ser levada presa. Para ela, a empatia da juíza plantonista [a qual não se recorda o nome] a salvou. 

"Na audiência de custódia foi quando alguém parou pra me ver, me ouvir, analisar o mínimo. Só ali foi observado que o nome do pai não era o mesmo, que a data de nascimento era diferente, a cidade que nascemos era diferente. Não fosse pela sensibilidade dela, eu teria ido pra penitenciária ou para o estado do Ceará pra me explicar lá. Ela foi extremamente sensível. Isso leva a entender que ainda podemos ter fé. Uma audiência que deveria durar de três a cinco minutos durou 3 horas, porque a magistrada pediu 2 horas para analisar as provas. Existem pessoas boas. Você não tem que ter só um poder. Você tem que ter uma sensibilidade, uma justiça intrínseca que foi o que eu vi nela. Eu vi essa juíza parar, dá algumas horas para avaliar até entender que se tratava de duas pessoas diferentes", relatou a estudante. 

EMPATIA SALVA

Ela acrescenta que, nos momentos de fraqueza, a empatia é o sentimento que lhe dar forças e faz questão de mencionar a também a atitude de uma advogada [a qual não recorda o nome], que emprestou o telefone para ela falar com a família, e o empenho do advogado e amigo, o qual o chama carinhosamente de Paulinho. 

"Teve essa advogada, o Paulinho que estava ali como meu advogado, mas também porque sabe quem eu sou e essa juíza que eu não tenho como agradecer, não tenho palavras. Só dizer que isso me deu um sopro de Justiça e ver que pessoas sensíveis fazem a diferença. Essa magistrada fez a diferença na minha vida e na vida da minha família. Vou levar pra vida essa sensibilidade dela. Vai estar comigo durante todos os dias da minha vida porque talvez seja isso uma das coisas que me faz dormir melhor

Maria da Penha diz que ainda teme ser confundida e que as consequências do erro ainda a afetam profundamente. 

"Mexeu com minha vida social. Outro dia minha filha viu o carro da penitenciária passar e voltou assustada com medo de que pudessem me levar. Foi uma situação que mexeu não só comigo e não tenho como apagar isso. Foi algo que mexeu também com o que eu penso sobre a Justiça. Antes eu via policiais como alguém que estivesse ali pra me defender. Hoje já penso que podem estar ali pra me prender, me condenar. Não cometi crime, mas estou sendo condenada", desabafa.

FUTURA PROFESSORA

Maria da Penha diz que pretende transformar a dura lição como missão enquanto educadora. 

"Se eu conseguir fazer com que um aluno meu não entre no crime para não ter que estar naquele lugar que eu passei, eu terei me tornado uma pessoa melhor. Não quero que o que aconteceu comigo impacte na pessoa boa que sou. Eu tenho caráter. Vou levar tudo o que passei como aprendizado. As diferença de raça, cor, sexo, religião, etnia ou qualquer outra devem ser respeitadas e valorizadas. Isso não é esmola, é um direito de todos", disse a futura educadora. 

Por fim, Maria da Penha prefere não individualizar culpados e diz que pobres e negros são vítimas de uma cultura. 

"Se for pra culpar alguém, posso culpar o estado com "E" minúsculo e maiúsculo, posso culpar uma nação, todo um país. Pra mim perdoar é não seguir com um peso maior que aquilo que você pode carregar. Sempre achei que perdoar estivesse atrelado ao fato de esquecer. Hoje, entendo que perdoar não te concede amnésia", disse Maria da Penha.

Sobre os planos para o futuro, a estudante segue assistindo aulas do curso de Ciências da Natureza. Questionada se fará novamente o Enem novamente [ela pretendia ingressar no curso de Letras Inglês], Maria da Penha diz que ainda não tem condições psicológicas. 

"No momento eu não penso e até digo que nem faço mais. Mas a gente nunca deve dizer nunca, ainda mais quando se tem fé em Deus", disse Penha. 

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