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Esperança Garcia, negra, escravizada e autora do 1º Habeas Corpus do Brasil; conheça sua história

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Fotos: Renato Andrade/Cidadeverde.com


Mulher, negra, escravizada e provavelmente autora do "primeiro Habeas Corpus" que se tem registro no Brasil. É uma versão resumida do legado de Esperança Garcia. Ela escreveu uma carta ao governador do Piauí em 1770 que a fez ser reconhecida em 2017 como a primeira advogada do estado pela seccional piauiense da OAB. 

Hoje, a OAB entregou o busto de Esperança Garcia em solenidade com a presença da ministra da Cultura, Margareth Menezes, do governador Rafael Fonteles (PT) e várias autoridades. O busto que ficará na OAB nacional, em Brasília, foi produzido pelo artista plástico Braga Tepi.  

No texto produzido por Esperança, ela  se queixa de uma série de maus tratos praticados pelo administrador da fazenda em que vivia. A carta foi documentada pelo historiador Luiz Mott em 1979. O reconhecimento por parte da OAB-PI é fruto de uma pesquisa de dois anos sobre a personagem realizada pela Comissão Estadual da Verdade e da Escravidão Negra da entidade. 

No documento, de 149 páginas, o contexto histórico e a natureza jurídica da carta de Esperança são analisados. O dossiê foi organizado pela advogada Maria Sueli Rodrigues de Souza, que morreu em julho de 2022 e pelo historiador Mairton Celestino da Silva.

O dossiê destaca que — ainda que na época não existisse Direito formalmente constituído como na Constituição de 1988 — a carta de Esperança tem natureza jurídica, uma vez que adota caráter de petição.

"Não restam dúvidas de que a Carta de Esperança Garcia se trata de ato de resistência, mas um tipo específico de resistência: uma atuação como membro da sociedade escravocrata que denuncia e pede proteção do Estado, como um Habeas Corpus, numa expressão de exercício da advocacia em nome próprio e de outras mulheres que também sofriam maus-tratos", pontuam os pesquisadores.

Esperança demonstra conhecer a função das autoridades, do poder exercido pelo governador na época e dos seus poucos direitos. Sua carta se atém apenas a violações a que foi submetida que desrespeitavam leis como o Decreto 1.695 de setembro de 1869, que proíbe a venda de escravos debaixo de pregão, separar o marido da mulher, o filho do pai da mãe, salvo quando maiores de 15 anos.

Outro aspecto jurídico da carta de Esperança apontado pelos pesquisadores é a natureza coletiva de suas reinvidicações. Ainda que o texto tenha sido escrito em primeira pessoa, Esperança pedia respeito aos poucos direitos que ela e seus companheiros de infortúnio dispõem como o de se conservarem cristãos, constituírem famílias e batizarem seus filhos na fé católica.

O dossiê não identificou entre os documentos o desfecho da demanda de Esperança, mas encontrou duas petições que reafirmam os maus-tratos relatados em sua carta.  

No dia 5 de setembro de 2017, Esperança recebeu, oficialmente, o título simbólico de primeira mulher advogada do Piauí durante solenidade no Auditório da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Piauí.

Garcia é das personalidades cuja história vem sendo resgatada graças a pesquisa acadêmica e a atuação de movimentos sociais. Outro exemplo de resgate é do advogado e jornalista Luiz Gama, ícone do movimento abolicionista brasileiro que teve sua extensa produção intelectual reunida no livro Lições de resistência — Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc, 2020).

O reconhecimento de Esperança Garcia vem se consolidando ano após ano. Na seccional piauiense da Ordem, a personagem empresta seu nome a um grupo de pesquisa. Uma maternidade na cidade de Nazaré do Piauí, um memorial da história negra em Teresina e o auditório da UnB também passaram a carregar seu nome e parte de seu legado.

Leia a carta de Esperança Garcia na íntegra:

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que cai uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”.

 

Da Redação (Com informações Consultor Jurídico)
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