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Lançada nos EUA, 1ª antologia com todos os contos de Clarice Lispector chega ao Brasil

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No início dos anos 2000, quando o americano Benjamin Moser começou a pesquisar sobre Clarice Lispector, o nome da autora de “A paixão segundo G.H.” circulava no país dele apenas na boca de um punhado de especialistas. No ano passado, Clarice foi capa das principais publicações literárias dos Estados Unidos, deslumbradas com seu “estranho coração” (“New York Review of Books”) e com o “sopro de loucura” (“New York Times”) que atravessa sua obra, comparada às de gigantes da literatura universal como Beckett e Mallarmé (“Los Angeles Review of Books”).

Esse percurso deve muito a Moser. Depois de lançar a biografia “Why this world” (no Brasil, “Clarice”), em 2009, ele colaborou com a publicação de cinco romances dela — e traduziu um deles, “A hora da estrela”. No ano passado, organizou o volume que reúne, pela primeira vez, os 85 contos escritos por Clarice. A recepção consagradora da imprensa americana ecoou pelo mundo.

— A grande alegria para mim tem sido assistir à emergência dessa obra na consciência do público de todo o mundo. A partir da edição em inglês, hoje há traduções dela até na Macedônia, na Coreia do Sul, na Turquia — diz Moser, por telefone. — Clarice foi sendo irradiada para vários países.

Agora é a vez de Clarice ser “irradiada” de volta ao Brasil, com o lançamento, na próxima semana, de “Todos os contos” (Rocco). Depois de apresentar a escritora ao público internacional, Moser oferece aos leitores brasileiros um novo olhar sobre ela. Admirada principalmente pelos romances, desde sua estreia com “Perto do coração selvagem” (1943), Clarice escreveu narrativas curtas durante toda a vida. Seu volume de contos mais célebre é “Laços de família” (1960), mas há muitas outras histórias espalhadas por jornais, revistas e livros menos lembrados.

— Mesmo quem acha que conhece tudo da obra de Clarice vai se surpreender com os contos, porque alguns saíram só na imprensa e outros ficaram em segundo plano — diz Moser, que estará na Flip deste ano para falar sobre Clarice.

Organizado de forma cronológica, “Todos os contos” começa com as histórias que Clarice escreveu na metade dos anos 1940, quando, depois de emigrar da Ucrânia, onde nasceu, em 1920, e passar pelo Nordeste, já estava radicada no Rio de Janeiro. É dessa época seu primeiro conto conhecido, “O triunfo”, publicado no jornal “Folha de Minas” em dezembro de 1944, já depois do impacto causado por “Perto do coração selvagem”.

A antologia reúne ainda textos dos livros “Laços de família”, “A legião estrangeira” (1964), “Felicidade clandestina” (1975), “Onde estivestes de noite” (1974), “A via crucis do corpo” (também de 1974) e “Visão do esplendor” (1975). E dois contos incompletos publicados em “A bela e a fera” (1979), dois anos depois da morte de Clarice.

Na apresentação, Moser escreve que “Todos os contos” pode ser lido como “o registro da vida inteira de uma mulher, escrito ao longo da vida de uma mulher”. As narrativas revelam a evolução de suas experimentações artísticas, mas também os dilemas de cada momento em que foram escritos: o ímpeto “artístico, intelectual e sexual” da juventude, as alegrias e decepções com o casamento e a maternidade, o confronto com a velhice e a decadência do corpo.

— A beleza dos contos é que, neles, vemos a evolução do olhar de Clarice ao longo de toda a vida. Ler os contos, do primeiro ao último, é como ter a revelação de um espírito.

'HÁ TAMBÉM A HORA DO LIXO'
Em “Eu e Jimmy”, um de seus primeiros contos, Clarice ironiza o machismo da sociedade brasileira dos anos 1940 pelos olhos de uma jovem impetuosa. Escrito na década seguinte, quando a escritora se entendiava com a vida de esposa de embaixador, “A menor mulher do mundo” retrata, na história de uma pigmeia africana, o silenciamento das mulheres.

Já os contos de “A via crucis do corpo”, escritos em um turbilhão criativo de três dias em 1974, falam com crueza de maternidade e sexualidade na velhice. Na apresentação, Clarice desdenha dos críticos que rotularam o livro de “lixo” e “pornográfico”: “Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo. Este livro é um pouco triste porque descobri, como criança boba, que este é um mundo cão”.

Os contos revelam vários outros aspectos da obra de Clarice, diz Moser. O olhar dela para a realidade brasileira está expresso em “Mineirinho”, sobre o bandido carioca morto com 13 tiros pela polícia, publicado na revista “Senhor” em 1962. Popular nas redes sociais, o texto é classificado por Moser como conto por sua linguagem literária e pela força alegórica que Clarice deu ao personagem.

Já textos mais experimentais, como “O relatório da coisa”, lembram a busca incessante de Clarice pela invenção. É essa qualidade que faz com que sempre seja possível encontrar novos ângulos em sua obra, diz Moser.

— A obra de Clarice é uma vertigem da linguagem. Esse é o impulso que a anima desde o início, a sua busca maior.

Fonte: O Globo

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