Cidadeverde.com

Uma lição para vida...

Este final de ano resolvi contar uma história diferente, na qual educação e ciência se entrelaçam.

No início da década de 1990 iniciava o trabalho de magistério em escolas privadas. Tinha pouco tempo que começara o trilho de sala de aula com o ensino de ciências e matemática e muito gás para trabalhar com muitas turmas. Foi quando assumi numa escola chamada Cipreve (atualmente extinta). Nesta escola fui professor em turmas de Ensino Médio, com Biologia e de Ensino Fundamental, com Ciências.

Para muitos professores, o desafio de ensinar passa não somente pela necessidade de conciliar a programação, mas o de estimular nos estudantes o gosto pelos temas ensinados. Nesta época tive uma turma de 7ª série (corresponde atualmente ao 8º ano do Ensino Fundamental), na qual o conteúdo ministrado relacionava-se ao Corpo Humano. Esta turma era pequena, cerca de vinte e poucos alunos, mas com alguns jovens bastante talentosos. Deste grupo destaco dois alunos: Daniel e Heurison.

Dedicados, atenciosos, líderes na turma, rivalizavam entre si, de forma sadia, as melhores notas da sala. A medida que o ano corria, detalhes sobre o corpo humano iam sendo trabalhados e íamos buscando alternativas para melhorar a assimilação. Segundo semestre, um novo desafio: a feira de ciências da escola.

 

Da Sala de Aula para Feira de Ciências

Como professor, me virava procurando orientar vários trabalhos das diferentes turmas com diferentes enfoques. Fui procurado pela dupla da 7ª série. “Professor, queremos uma ideia para Feira de Ciências”. Me explicaram que faziam um curso de eletrônica por correspondência e que poderiam aplicar esta ferramenta em algum trabalho. Sugeri que pudessem fazer algo envolvendo o Sistema Nervoso, que tínhamos acabado de estudar. De pronto os olhos brilharam: “vamos montar um modelo do sistema nervoso usando um circuito e LEDs!”.

Nos dias que antecederam à feira, a dupla prestava contas do que faziam, mas confesso que pouco pude ajudar para o andamento do projeto. A escola toda se organizava: professores de diferentes áreas orientavam os trabalhos. A Feira premiava os três melhores trabalhos, confirmando uma tradição que funcionava como um atrativo a mais.

No dia da feira passei em cada espaço para as últimas orientações da apresentação. Quando cheguei ao espaço dos dois me deparei com um trabalho extremamente simples: num pedaço de papelão, desenharam o perfil do corpo humano com caneta hidrográfica preta. Um LED verde na cabeça piscava de modo alternante com um LED vermelho na altura do coração. Nas mãos e nos pés do corpo humano desenhado no papelão existiam pequenos contatos metálicos feitos com solda de eletrônica. Quando tocávamos neste contato um LED vermelho acendia na cabeça. Na posição de professor-orientador exigi: “o que vocês vão explicar?”. “Professor o LED piscando alternado na cabeça e no coração representam o sistema nervoso autônomo sobre o qual não temos controle” fuzilou Daniel. “Já os contatos nas mãos e nos pés indicam sensores como o tato. Ao tocarmos se transmite um impulso pelo sistema nervoso central e aí representamos com o LED na cabeça, mas podia ser também da medula espinhal” disparou Heurison. Fiquei em êxtase com a simplicidade e com a capacidade de conectar as lições de sala de aula com o curso por correspondência. Elogiei o trabalho e fui acompanhar outros grupos. Aquele trabalho estava concorrendo.

A feira estava muito diversificada e movimentada. Estudantes de outras escolas, convidados, circulavam pelas salas assistindo às apresentações. Um colega professor de física conseguiu por empréstimo uma parafernália vinda da UFPI que simulava a ausência da força de atrito, apresentado por estudantes do 1º ano do Ensino Médio. Era um dos trabalhos mais visitados porque tinha equipamentos diferentes, típicos de laboratórios sofisticados para época. Mas o corpo humano desenhado no papelão também não ficava atrás em termos de visitação.

No final da tarde, eis o grande momento: o anúncio dos vencedores e... Segundo lugar para o Sistema Nervoso... Vi a decepção estampada nos olhos daqueles meninos! O modelo importado do Laboratório de Física da UFPI tinha encantado os professores do júri.

Na perspectiva de professor vi que ali tinha ocorrido uma injustiça. Chamei os dois para conversar. Com os olhos marejados eles tentavam buscar uma explicação para tanto esforço empreendido não ter sido o primeiro lugar. Comecei elogiando muito o trabalho deles e dizendo que nem sempre as pessoas conseguem ver nas entrelinhas. Que o mais importante é que ali tinha o esforço, a dedicação e o conhecimento deles. E que, se era pelo prêmio, eles seriam recompensados.

Imaginem que em 1991/92 (não sei ao certo), engatinhava-se ainda na possibilidade de se ter um computador pessoal. Eu tinha um computador chamado CP200s, que tinha abandonado porque conseguira adquirir um TK90X, considerado mais moderno (para se ter uma ideia estes computadores eram ligados na TV e qualquer programa que se conseguia produzir, para armazenar, se utilizavam fitas cassetes, numa chiadeira infeliz, na hora de carregar os dados). Coloquei o CP200s (foto) embaixo do braço e levei para a escola na aula seguinte. Estes meninos não cabiam em si de tanta alegria. Fiz justiça com as próprias mãos.

Com esta história quero opinar sobre a importância das aulas práticas e feiras de ciências para o aprendizado. A educação permite um salto qualitativo sem comparações. Sinceramente não sei dizer o que aconteceu com aqueles jovens que tiraram o primeiro lugar na feira porque tinham um equipamento que simulava a ausência de atrito. Mas sei dizer onde estão os meninos do trabalho do Sistema Nervoso. Ficou curioso?

 

De meninos curiosos a cientistas

DANIEL BARBOSA LIARTE é formado em Ciências Biológicas pela UFPI. Tem Mestrado e Doutorado em Ciências da Saúde pelo Centro de Pesquisas Renê Rachou da Fundação Instituto Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí (UFPI), tem experiência em Genética Molecular e Parasitologia.

Daniel Liarte (Fonte: SIGAA-UFPI)

HEURISON SOUSA E SILVA é bacharel em Física pela UFPI. Tem Mestrado e Doutorado em Física Aplicada pelo Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). Professor Adjunto II da Universidade Federal do Piauí (UFPI, tem experiência em Propriedades ópticas e Espectroscópicas da Matéria Condensada.

Heurison Silva (Fonte: SIGAA-UFPI)

Um dia desses, conversando com Daniel, com quem tenho maior proximidade pelo fato de ser biólogo, recordei da Feira e perguntei: fez alguma diferença na sua vida? Ao que respondeu: “Minha carreira, sem dúvida alguma, começou naquele ano, inspirado em suas aulas e, desde então, minha sede por aprender, não tem fim...”

Qual a profissão que te permite ouvir isso de um grande profissional? Desconheço outra que não seja a de professor.

Feliz 2019!!!!

 

 

Você pode receber direto no seu WhatsApp as principais notícias do CidadeVerde.com
Siga nas redes sociais