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Relatório da Comissão da Verdade cita dois piauienses mortos na ditadura

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O extenso relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado nesta quarta-feira (10), cita dois piauienses entre os mais de 400 mortos e desaparecidos políticos em razão do regime militar. Para os membros da comissão, Antônio de Araújo Veloso e Antônio Pádua Costa foram mortos em razão da Guerrilha do Araguaia, no Pará. Um deles nunca teve seu corpo encontrado.

Reprodução/CNV

Trecho do relatório da Comissão da Verdade que cita o caso do piauiense

O caso no qual a comissão conseguiu novas informações é o de Antônio Pádua Costa, o Piauí. Natural de Luís Correia, litoral do Estado, ele está entre os 62 desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, criada como tentativa de se iniciar uma revolução socialista a partir das regiões mais pobres do país. 

Antônio de Pádua estudou Astronomia/Física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Militante do movimento estudantil, chegou a ser preso em 1968 durante o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP). Desde então, foi perseguido e viveu na clandestinidade. No início dos anos 1970, se juntou aos militantes no sudeste do Pará e, com o apelido de "Piauí", chegou a comandar um dos destacamentos da guerrilha. 

Acesse os documentos na íntegra

A informação mais recente sobre "Piauí" foi obtida em 2013, em depoimento dado pelo sargento João Santa Cruz Sacramento para a Comissão Nacional da Verdade. Segundo ele, que foi convocado para atuar nas ações contra a guerrilha, Antônio de Pádua foi levado para a Casa Azul, em Marabá (PA), local clandestino de tortura onde hoje funciona uma sede do Departamento Nacional de Infraestrutura em Transportes (DNIT). O sargento relatou que na época a ordem era levar os presos para o local ou matá-los. 

"É porque era obrigado a matar, vamos dizer assim, e eu tive essa sorte, que Deus me livrou disso. Outras equipes encontraram, matavam, entendeu? Quando se prendiam, a gente entregava lá na Casa Azul, quando era preso", disse o sargento no depoimento. 

"Foi o caso do Piauí, que ele andou comigo, não é? Depois vieram apanhar ele na Bacaba de helicóptero, levaram lá para a Casa Azul e de lá não se soube mais"
Sargento Sacramento, em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade

Perguntado sobre qual o critério para prender e matar, ele citou o piauiense. "Olha, para dizer a verdade, doutora, é o seguinte: eu não sabia mesmo, porque quando a gente entregava o preso ou o corpo lá na Casa Azul, ninguém tinha mais acesso e ninguém sabia o que acontecia. [...] É como eu falei há pouco, os que eram capturados vivos eram entregues na Casa Azul, como eu já falei há pouco, aí de lá ninguém sabia mais o que eles faziam com o cara. Foi o caso do Piauí, que ele andou comigo, não é? Depois vieram apanhar ele na Bacaba de helicóptero, levaram lá para a Casa Azul e de lá não se soube mais. Como eu repito novamente, quando se perguntava pelo fulano eles diziam: “Não, mandaram para Brasília”. A resposta que a gente obtinha era essa. [...] É o seguinte, quando eles diziam que “mandaram para Brasília” era que estava eliminado o cara."

Arquivo/CNV

Registro da Casa Azul, para onde o piauiense foi levado de helicóptero, segundo depoimento de sargento

O relatório da comissão não precisa se o desaparecimento de Antônio de Pádua ocorreu no dia 14 de janeiro ou 5 de março de 1974, mas aponta o local do sumiço do piauiense como a base militar da Bacaba, no Pará. Um documento cita que ele e outros dois companheiros foram perseguidos por militares enquanto colhiam mandiocas no início daquele ano. Já a Marinha registrou em 1993 que o piauiense morreu na segunda data.

A Comissão da Verdade fez o registro do caso, lembrando que o Brasil já foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) a investigar os fatos, julgar e punir os responsáveis (se possível), além de localizar as vítimas. "Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso de Antônio de Pádua Costa, retificação da certidão de óbito, identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos, conforme sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos", diz o documento. 

Depoimentos colhidos em 2001 pelo Ministério Público Federal e listados no relatório apontam que o guerrilheiro piauiense foi forçado a andar pela mata como guia do Exército, mas só teria mostrado locais vazios. 

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Relatório da Comissão da Verde foi entregue nesta quarta-feira para a presidente Dilma Rousseff

Outro piauiense
O relatório entregue nesta quarta-feira para a presidente Dilma Rousseff é resultado de dois anos e sete meses de trabalho da comissão, instalada para esclarecer violações aos direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, período que compreende as duas últimas constituições democráticas do Brasil. 

O documento ainda aponta outro piauiense entre os mortos pela ditadura, mas o caso de Antônio de Araújo Veloso é diferente. Natural de Bertolínia, o lavrador conhecido como "Sitônio" era casado e pai de sete filhos. Ele morava em São Domingos do Araguaia (PA) quando conheceu e até abrigou alguns guerrilheiros antes das Forças Armadas se instalarem na região, em 1972.

"Além de ter sido espancado violentamente e ter ficado dias sem água e comida, ele foi colocado com os pés sobre latas abertas que cortavam seus pés toda vez que se movia"
Trecho de relatório sobre as torturas contra Sitônio, lavrador piauiense morto no Pará

Sitônio foi preso e também torturado, mas seu atestado de óbito apontava morte por causa natural sem assistência médica. Sua família, no entanto, contestou. A morte do lavrador quatro anos após sua prisão teria sido consequência dos problemas de saúde e psicológicos obtidos no cárcere.

Um relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidoss Políticos, criada em 1996 e citada no documento da comissão da verdade, narra que Sitônio "além de ter sido espancado violentamente e ter ficado dias sem água e comida, ele foi colocado com os pés sobre latas abertas que cortavam seus pés toda vez que se movia. Esse tratamento teria lhe ocasionado diversas sequelas, impossibilitando-o de trabalhar e sustentar sua família". 

Não lembrados
A lista da Comissão da Verdade deixou de lado outros dois piauienses já conhecidos por serem vítimas do regime militar. Um deles é Simão Pereira da Silva. Preso em 1973 em São João do Araguaia pelo Exército, sofreu torturas e espancamentos. Morreu em 1979, em Goiânia, sem conseguir se recuperar das sequelas que havia contraído. Ele, "Sitônio" e "Piauí" foram homenageados em 2010 com um memorial no Museu do Piauí.  

O outro caso é o do teresinense José Sebastião Rios de Moura, conhecido por ter participado do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. De volta do exílio em 1983, ele foi morto misteriosamente em Salvador no ano de 1983. O crime jamais foi elucidado. O caso foi resgatado em maio de 2013 pela Revista Cidade Verde.

Fábio Lima
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