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Domenico de Masi apresenta em livro seu alfabeto para uma sociedade desorientada

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Primeiro o sociólogo italiano Domenico de Masi estabeleceu um diagnóstico: vivemos desorientados num mundo em rápida transformação e sem um modelo capaz de oferecer respostas aos desafios que nos são impostos por essas mesmas transformações. A esta “sociedade desorientada”, o sociólogo apresenta agora um “alfabeto” que serve como um guia de viagem. Em “Alfabeto da sociedade desorientada”, de Masi vai construindo uma lista heterodoxa de conceitos, termos, palavras, softwares e hardwares da existência humana contemporânea, que começa com “aforismo” e termina com a letra grega “zeta”, tomada como alegoria para a ameaça dos diferentes autoritarismos.

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O sociólogo vê a nova obra como um desdobramento de seu último livro, “O futuro chegou” (LeYa/Casa da Palavra), em que analisou 15 modelos diferentes de sociedade que pudessem nos inspirar no presente. Ele sentiu a necessidade de explicar de forma simples alguns conceitos recorrentes no seu trabalho e nos temas que aborda, como o trabalho, a criatividade, a comunicação, a ética e a estética — explorados nos textos sobre “hobby”, “mídia”, “web”, entre outros. Por isso mesmo, dispensou as notas de rodapé e as referências bibliográficas. Escrever o livro o ajudou também a orientar as próprias ideias. De Masi defende que a vocação sociológica exige que ele busque sempre compreender as mudanças do mundo.

— Sociedades antigas, desde o tempo dos gregos e romanos até a Idade Média, do Renascimento à sociedade industrial, nasceram tendo como uma base um modelo teórico desenvolvido por filósofos e concretizado por militares ou políticos. Nossa sociedade pós-industrial atual não é baseado em nenhum modelo teórico compartilhado. Portanto, estamos desorientados, sem saber como distinguir a verdade da mentira, o bem do mal, a beleza da feiura. Meu livro é antes de tudo um diálogo comigo mesmo, para reorganizar as minhas ideias em torno de alguns aspectos fundamentais da nossa sociedade — afirma, em entrevista por e-mail ao GLOBO.

Nos ensaios que compõem o livro, o sociólogo segue um estilo que une simplicidade e erudição. No capítulo sobre o “aforismo”, ele aponta que o pequeno texto que condensa uma ideia ou princípio filosófico é um antecessor de muitos séculos do Twitter, rede social cujos textos estão limitados a 140 caracteres. E, com humor, cita a frase do frade dominicano Bartolomeu de San Concordio: “Os homens no tempo de hoje são desejosos de brevidade”. A ironia é que San Concordio disse isso em 1305. Essas relações entre passado e presente são recorrentes na obra, uma forma de construir fundações sólidas para um futuro no movediço terreno contemporâneo.

— Descobrir as relações existentes entre passado e presente dá maior significado ao presente. Veja esta observação de Bertrand Russell: “Eu provei pêssegos e damascos bem antes de saber que eles começaram a ser cultivados na China, no início da Dinastia Han. E que um chinês preso pelo grande Rei Kanishka os apresentou à Índia, de onde eles se espalharam pela Pérsia, chegando ao Império Romano no primeiro século de nossa era. Tudo isso deixou essas frutas mais doces para mim”. Mas conhecer o passado e decifrar o presente serve apenas para desenhar o futuro. Desenhar o futuro representa a mais nobre função do indivíduo e da sociedade como um todo.


De Masi afirma que a montagem do alfabeto foi bastante pessoal e seguiu o seu próprio interesse. Isso levou a escolhas curiosas, como “Quixote” e “Nápoles”. A convivência hoje quase indiferente dos napolitanos com o problema crônico da coleta de lixo elevou a cidade italiana à “metáfora planetária da parábola urbana, como profética precursora de todas megalópoles do mundo”, pois a cidade e o lixo “são os dois maiores símbolos da sociedade consumista”, escreve ele no livro.

— Nápoles representa um modelo de cidade onde o espírito racional e cartesiano da metrópole convive com o emocionalismo caloroso da aldeia. Nápoles é o Rio de Janeiro da Europa, e o Rio é a Nápoles do Brasil — afirma.

Já o capítulo “Quixote” é uma homenagem ao seu romance favorito, “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes. O sociólogo acredita que a obra é o triunfo do “ócio criativo”, título do seu livro mais famoso.

— “Dom Quixote” é o primeiro romance da história, um livro que funde e confunde a sensualidade árabe, a inteligência judaica, a astúcia cristã. É o triunfo do ócio criativo e da existência border line. Para desfrutá-lo inteiramente é preciso estar despreocupado, mentalmente disponível e ter tempo suficiente para aprender e se divertir, rompendo a estressante sequência das tarefas diárias com a pausa alegre e misteriosa da leitura. O ócio criativo é uma arte que requer treinamento, e “Dom Quixote” é o início perfeito.

De Masi conhece bem a cultura brasileira e dedica parte do ensaio sobre aforismos ao escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. Ele destaca frases como “o morto esquecido é o único que descansa em paz” e “com sorte você atravessa o mundo. Sem sorte você não atravessa a rua”. O sociólogo garante que as máximas de Nelson se aplicam bem à Itália.

— Quase todos os aforismos italianos também podem ser aplicados ao Brasil porque a semelhança entre brasileiros e italianos é muito grande. Os dois povos são propensos à alegria, à sensualidade, à hospitalidade. Mesmo no crime temos uma certa semelhança: basta comparar a operação Mãos Limpas com a operação Lava-Jato — diz.

Apesar da crise no Brasil, de Masi mantém o seu otimismo incorrigível sobre o país, onde vem com frequência há mais de 30 anos. O sociólogo observa uma mudança de humor, uma oscilação entre depressão e euforia. Mas vê um caminho para a construção de outro futuro.

— Itália e Brasil têm uma notável propensão à musicalidade, à solidariedade, à hospitalidade, à alegria. O futuro dos dois países depende de suas capacidades de selecionar uma classe dirigente honesta, criativa, profissionalmente preparada. Nelson Rodrigues dizia “O Brasil não é popular no Brasil”. O mesmo vale para a Itália — finaliza.

Fonte: O Globo

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