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Obra-prima de Clarice Lispector, 'A hora da estrela' completa 40 anos

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Foi na cama do Hospital da Lagoa, em 7 de dezembro de 1977, que Clarice Lispector escreveu as últimas palavras: um bilhete entregue à amiga Olga Borelli, que desde Água viva auxiliava a autora a estruturar seus romances. O bilhete era mais uma das dezenas de orientações para A hora da estrela e foi escrito dois dias antes de Clarice morrer. O livro havia sido publicado em outubro do mesmo ano e boa parte do processo da escrita se deu no hospital no qual a autora tratava um câncer em estágio terminal. Entre bilhetes e anotações, a vida da retirante Macabea foi surgindo de um manuscrito costurado em meio à urgência. Clarice sabia que o fim estava próximo e que A hora da estrela seria seu último livro.

 Esse foi um dos motivos que emocionou a escritora Paloma Vidal quando se debruçou sobre os originais do romance na sala de arquivos do Instituto Moreira Salles. A argentina radicada no Brasil desde a primeira infância recebeu da editora Rocco a missão de escrever o prefácio para a edição comemorativa dos 40 anos de A hora da estrela que agora chega às livrarias. Em vez de um prefácio tradicional, Paloma escreveu uma crônica na qual narra o encontro com os manuscritos e, ao mesmo tempo, conta o caminho de Clarice na estruturação do livro. “Uma coisa que eu pensei muito foi que o encontro com os manuscritos te faz ver o corpo do escritor atuando no livro, com suas oscilações, suas fragilidades, sua persistência”, conta.
 
Clarice fez muitas anotações durante a escrita do livro e isso diz muito sobre o processo de criação da narrativa. “Os manuscritos explicitam uma condição do livro, que é de ser uma construção ao mesmo tempo linear e fragmentária, que junta procedimentos diversos, junta colagem e narração. Fui muito cuidadosa, ou tentei ser, para não extrapolar certo limite do que é possível dizer sobre esses textos, sabendo que eles se aproximam muito da morte, mas não deixando que ela seja uma moldura para tudo o que se lê.” O texto de Paloma é uma introdução delicada, emocionada e reveladora para a história de Macabea.
 
Edição esmerada
 

O editor Pedro Vasquez decidiu incluir, na edição comemorativa, prefácios de edições realizadas em outros países. Assim, entraram textos da crítica francesa Hélène Cixous, da pesquisadora argentina Florencia Garramuño e do escritor irlandês Colm Tóibín, além do primeiro prefácio à edição brasileira, escrito por Eduardo Portella, e um texto de Nádia Battela Gotlib, autora da biografia Clarice – Uma vida que se conta. “A ideia era fazer uma edição que não fosse simplesmente comemorativa, bonita, só com manuscritos, mas sim oferecer algo de substantivo que pudesse contribuir para a compreensão da obra da Clarice Lispector como um todo. Os critérios foram simples: pegar os melhores textos que a gente tinha disponíveis, especificamente sobre A hora da estrela desde o seu lançamento”, explica Vasquez.
 
O texto de Tóibín foi feito para a publicação em inglês de uma nova tradução, feita por Benjamin Moser, biógrafo da autora, e publicada em 2016. “Clarice tinha, como Borges em sua ficção, a habilidade de escrever como se ninguém antes houvesse escrito, como se a originalidade e o frescor do seu trabalho houvessem pousado no mundo inesperadamente, tal qual o ovo do conto Uma galinha”, escreve Tóibín. Hélène Cixous dá ênfase ao fato de A hora da estrela ser o último texto da autora. A ensaísta revela ter um fascínio por esse tipo de situação. “É a partir da morte que se lembram dos tesouros que a vida contém, com todos os seus infortúnios viventes e todos os seus gozos”, escreve Hélène, para em seguida explicar: “Há um texto que é como um salmo discreto, uma canção de graças à morte. Este texto se intitula A hora da estrela”.


 
A crítica francesa descobriu Clarice em 1977, pouco antes de a escritora morrer, e escreveu sobre a brasileira em algumas outras ocasiões. Foi Hélène quem começou a defender, no mundo da crítica literária, a existência de uma escrita feminina e a obra de Clarice teve boa participação nisso. No texto de Florencia Garramuño é a Clarice das fotos que emerge para lembrar o lugar da escritora no cenário da literatura brasileira: à frente da passeata dos cem mil, em 1968, pronta para protestar contra a ditadura, de óculos escuros e prestes a se juntar a Caetano Veloso e Gilberto Gil. A autora de A hora da estrela, lembra Florência, era uma voz solitária e original no contexto literário dos anos 1940 e 1950 e isso se devia ao caráter lírico e experimental, calcado no universo feminino, no intimismo e na maneira como explorava as sensações. São as mesmas características que, nos 1970, acabam por torná-la um nome consagrado.
 
» Duas perguntas / Pedro Vasquez

Que lugar tem A hora da estrela na obra da Clarice e por que o romance foi tão celebrado? 
Ele realmente é especial por um aspecto: a Clarice era sentida como uma autora hermética, difícil, sobretudo nos romances. Porém, A hora da estrela tem uma história mais linear, uma história de uma retirante pobre, que vem do Nordeste para o Sul para melhorar a vida, uma coisa muito comum naquele tempo. Tem esse lado que permite atingir um público mais amplo. Porém, é uma obra que combina também o lado tipicamente Clarice Lispector. Já começa que tem mais de 12 títulos. E tem uma complexidade narrativa, porque tem um narrador masculino. Tem esse lado experimental presente, mas tem também o lado acessível. Ela consegue pegar dois públicos. O que nunca leu Clarice vai ficar envolvido pelo drama da Macabea. E o leitor dela vai reconhecer os rasgos de criatividade desconcertantes que continuam a surpreender a gente decorridos 40 anos.
 
Qual a atualidade do livro?
Acho que é total. Embora o Nordeste continue com problemas até da própria seca, não tem esse êxodo como tinha naquela época, no final dos anos 1970. Mas tem essa figura do retirante, um tipo de migrante específico, que foge da seca, da fome. Tirando isso, que é historicamente datado, o livro retrata uma pessoa do povo. E essa pessoa continua a existir, porque nosso país tem muitos pobres ainda. Você vai encontrar aqui, nas favelas do Rio, centenas de Macabeas, milhares. 

Fonte: Correio Brasiliense 

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