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Mãe de Marielle Franco quebra o silêncio: "me despedi"

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Foto: Lucas Landau

O assassinato brutal da filha mais velha, com quatro tiros na cabeça, não fez Marinete da Silva parar de trabalhar. Aos 66 anos, a advogada passa o dia correndo pelos fóruns do Rio de Janeiro, pra dar conta de todos os processos que toca (sempre na área cível). Entre os colegas de profissão e rotina, há quem até agora não se deu conta de que é ela a mãe da vereadora Marielle Franco. Marinete não é de sair contando. E não é de hoje que se acostumou a evitar falar de si. Ainda assim, tem naturalmente um jeito convidativo: o discurso rápido e simples, quase pra passar desapercebida, contrasta com o tom altivo, cheio de personalidade. “Como boa nordestina, de um lado, sou um doce; do outro, um ralo”, diz a paraibana. Os traços fortes do rosto que a filha herdou se equilibram no olhar sereno, terno. Quando conversa, repete várias vezes o nome do interlocutor, assim como os vocativos “Minha filha” / “Meu filho”. Tudo sem abrir mão do bom humor. Arremata cada frase com prazer, dá risada. Quando nos encontramos, fazia só cinco dias desde o assassinato de Marielle.

Dona Marinete me abriu o portão de seu sobrado em Bonsucesso, zona norte do Rio, às 19h40. Me abraçou apertado, disse que estava levando. E, imediatamente depois, mudou o foco: “Mas tem tanta gente que sofre mais… Não sou a primeira nem serei a última”. Até o momento em que nos despedimos, quando já passava das 22h, a porta de casa ficou aberta; fazia 28 graus. “Sempre deixo tudo assim, pra ventilar. Principalmente a janela. Quando Marielle chegava aqui, gritava: ‘Marinetinha! Abre o portão’. Eu a via lá embaixo. Ela entrava e ia ficando toda à vontade, só de sutiã e calcinha pela casa. Eu não gostava. Imagina, um mulherão enorme daquele, 1,76 metro de altura. E a rua logo aqui… Os vizinhos, gente!”, relembra, sorridente. Mãe e filha, tão parecidas, tão diferentes. Em junho, dona Marinete completa 40 anos de casada com seu Antônio, o Toínho; católica fervorosa, vai à missa todo dia. Já Marielle foi funkeira, engravidou solteira, teve dois casamentos, lutava pela legalização do aborto, assumiu-se homossexual. “Muita coisa era uma doideira pra mim… Eu não concordava. Mas sempre respeitei e admirei a garra da minha filha. Ela era engajada. No começo, eu não queria que fosse política. Já fazia oito anos que estava na Comissão [de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro] com o Marcelo [Freixo]. E eu pensava: ‘Pelo amor de Deus! Já está tão bem aí’. Mas depois virei a maior cabo eleitoral dela. Rodei esse Rio de Janeiro todo contando pras pessoas sobre o trabalho imenso da minha filha. Com jovem, com negro, com mulher, com pobre, com minorias. O legado que ela deixou é o que me motiva hoje.”

A última despedida

Na noite da morte de Marielle, Marinete estava em casa, de pijama. Assim como na noite em que nos encontramos, também se preparavam para dormir lá sua caçula, Anielle (a Ane), 33, a filha dela, Mariah, de 2 anos, e a filha de Marielle, Luyara, 19. Um padre muito amigo da família ligou para Marinete, avisando da notícia. Mas, no primeiro momento, ela não acreditou. Rapidamente, Luyara e Ane foram recebendo ligações e mensagens de amigos. A família ligou a TV, e só assim a notícia se confirmou. “Até agora é difícil de acreditar. A sensação é de estar em frangalhos, feito um zumbi. O que me conforta é saber que na noite anterior, por acaso, consegui me despedir da minha filha.”

Na tarde de terça-feira, um dia antes do homicídio, Marielle telefonou para a mãe, oferecendo uma carona no fim do expediente. E Marinete foi encontrá-la na Câmara. “Foi só a segunda vez que fui no gabinete da Marielle. Nossos horários não coincidiam nunca. Quando as pessoas me encontraram, vieram fazer elogios por causa dela, ofereceram água, café, lanche… até anunciaram minha visita no Plenário. Eu me senti orgulhosa, mas fiquei com vergonha. Tomamos um chá juntas, conversamos muito. 

Sobre coisas da casa, da família. Ela me deu umas recomendações sobre a Luyara, que estava passando um tempo comigo pra tratar de uma conjuntivite. Disse pra eu cuidar pra que ela estudasse, lesse mais, se concentrasse no Enem deste ano. Saímos de lá quase às 8h da noite e começamos a rodar pelas farmácias à procura de um colírio contra a conjuntivite da Lu. O Anderson [motorista de Marielle que também foi baleado e morreu naquela noite] foi dirigindo – e tivemos que rodar por 19 farmácias até conseguir o remédio! Fiquei bastante com minha filha, como há muito tempo não fazia. Cheguei em casa tarde, já estava quase acabando a novela. Demos tchau com um abraço apertado. Eu estava muito feliz.”

Nos dias que se seguiram à morte da filha, Marinete se sentiu acolhida pelas multidões mundo afora. No enterro, ganhou fotos enquadradas de Marielle que ela não cansa de olhar. Só foi ter um momento mais reservado com a família na missa de sétimo dia, horas depois de receber uma ligação de pêsames do Papa Francisco. Naquele dia, Marinete teve de entregar a documentação de um processo no centro da cidade, pela manhã, e, por isso, agendou a celebração ali perto, na Igreja Nossa Senhora do Parto, na hora do almoço.

Em nome da mãe

Foi da mãe que Marielle puxou o gosto pelo trabalho e o dia a dia incansável. “A vida é dura”, costumava repetir. Desde o berço, a parlamentar mostrou a que veio, segunda dona Marinete. “O parto de Marielle foi rápido, ela quase nasceu em casa. Era um bebê que não chorava. E logo virou uma criança independente, que desde cedo assumiu muitas responsabilidades.” Marielle começou a ajudar nas contas de casa aos 11 anos, quando conseguiu um estágio de auxiliar numa universidade. Com o dinheiro que recebia, pagava parte da mensalidade da escola particular – até então, só tinha frequentado o ensino público. Também trabalhou como catequista. Naquela época, Marinete viajava muito a trabalho, e deixava a cargo dela as responsabilidades da caçula, cinco anos mais nova que Mari. “Ela ia até em reunião da escola. Sempre teve esse atrevimento quando o assunto era a defesa do outro e a educação. Mas também ensinou a irmã a se divertir. Quando Marielle dançava nos bailes funk do Furacão 2000, com 14 anos, pulou a janela de casa pra levar junto Ane, que tinha 9 anos. Nesse dia, Marielle apanhou bastante. O nordestino é assim. Sempre criei e formei na rédea curta. E Marielle era muito levada”, diz Marinete. Ela conta que comprou “o vestido mais lindo do mundo” para a primeira comunhão de Marielle; também deu uma festança de debutante a ela, para mais de 300 convidados, quando fez 15 anos; e celebrou “um casamento maravilhoso” quando ela engravidou do namorado, aos 18 – apesar de ter ficado arrasada com a notícia: “Na nossa família, o certo é casar antes”.
Dona Marinete nunca se aprofundou nos tabus envolvendo a filha, da pauta pela descriminalização do aborto à homossexualidade da primogênita. “A gente conversou muito pouco sobre isso e só ultimamente. O assunto veio mais agora, na mídia… Mas a verdade é que Marielle sempre foi muito determinada. Conseguiu superar qualquer barreira.” 

Inútil paisagem

As mulheres fortes são uma marca da família há gerações. Dona Marinete tem seis irmãs. Passaram a adolescência em João Pessoa, onde a família tinha uma pastelaria, mas foi no Brejo paraibano que as origens se solidificaram mesmo, na cidade natal, Alagoa Grande, a mais de cem quilômetros da capital. Sua mãe, Filomena, foi uma liderança política importante na cidade, um cabo eleitoral de peso – do partido de direita. “Naquela época, fazíamos reunião à noite na casa de uma tia comunista, Adelina. Eu me alinhava mais a ela que à minha mãe politicamente. Eram os anos 60, plena ditadura militar; tudo tinha que ser muito escondido. Isso me influenciou a estudar direito”, conta Marinete.

Quando perguntei se ela acreditava nos gritos das ruas, de que a morte de sua filha é culpa da intervenção federal, titubeou. “Não se prejulga qualquer pessoa, órgão ou juízo de valor. A única coisa que espero é que se encontre o culpado. Foi covarde, doloroso. Marielle não merecia isso, tudo que ela fazia era dentro da lei. Ela não acusou ninguém, simplesmente mostrou uma situação que precisava ser resolvida. Talvez tenha incomodado alguém? Pode até ser. Passado do limite? Acho que não. O trabalho dela era cobrar ajustes às injustiças de todos. Quantas vezes ela não subiu o morro e também defendeu policial. Não quero nem imaginar quem foi. Quando boto a cabeça no travesseiro à noite, só peço a Nossa Senhora uma resposta.”  

Interrompendo a fala agitada da avó, Mariah, a filha de Ane, chega correndo, aos gritos: “Vovó, vovó!”. Chora, bate o pé, aponta o dedo em riste em direção a Marinete, quando tentam levá-la para o quarto; só quer ficar com ela. A menina se distrai com o telefone sem fio da casa, faz que vai ligar para “a dinda” (Marielle era também madrinha da sobrinha). E sua mãe me conta que a menina fica esperando pela voz, com o fone no ouvido. Marinete acalma a neta, lhe dá um abraço. Aí se levanta e encara a janela aberta. Sorri. “Também fico esperando pelos gritos de ‘Marinetinha!’ lá debaixo. Só eu sei a falta que Marielle faz.”

Fonte: O Globo

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