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Câmara deve vetar troca de sexo no SUS

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Se depender de membros do Legislativo, uma iniciativa do Executivo já nasceu fadada ao insucesso. Com o apoio de colegas de Parlamento, o líder do PHS na Câmara, Miguel Martini (MG), protocolou na Mesa Diretora da Casa um projeto de decreto legislativo que interfere na identidade sexual de milhares de pessoas: a realização do chamado “processo transexualizador” – ou cirurgia de mudança de sexo – por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

O deputado quer suspender a Portaria 1.707, publicada em agosto deste ano pelo Ministério da Saúde, que prevê a inclusão desse tipo de cirurgia entre os procedimentos custeados pelo Sistema Único de Saúde. Caso seja aprovado pela Câmara e pelo Senado, o decreto pode frustrar a expectativa das 500 pessoas que, segundo o Coletivo Nacional de Transexuais, aguardam na fila da rede pública para trocar de sexo.

“Ora, se o SUS não tem condições de atender as mulheres durante o pré-natal, se não tem condições de fazer cirurgias, se não tem condições de atender pacientes oncológicos, como poderá fazer cirurgia para mudança de sexo, em detrimento daqueles que não têm condições de viver nem de sobreviver?!”, questionou Martini, integrante da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara.

Um dos principais representantes no Congresso do movimento Renovação Carismática, da Igreja Católica, Martini já articula o apoio da Frente Parlamentar Evangélica para derrubar a norma, o que deve deflagrar mais um embate entre religiosos e homossexuais no Parlamento, a exemplo do que já ocorre na discussão do projeto de lei que torna crime a discriminação por orientação sexual.

Embate à vista

O presidente da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara, João Campos (PSDB-GO), condena veementemente a possibilidade de mudança de sexo por meio de procedimento bancado pelos SUS.

“Isso é um absurdo. O SUS não está tendo dinheiro para financiar políticas públicas curativas, ou de combate a epidemias, vai ter dinheiro para atender a questões pontuais, individuais, de alguns cidadãos brasileiros?”, protestou Campos, para quem a coletividade será desrespeitada se esse tipo de cirurgia for realizado pelo SUS.

“Quantas pessoas estão esperando na fila para fazer cirurgia de câncer de mama, por exemplo, e não conseguem? Isso é dissenso, uma falta de juízo, uma excrescência”, completou o deputado, acrescentando que as “conveniências” de determinados cidadãos não pode ser bancada pelo Estado sem que esteja caracterizada a necessidade. “Quem quiser [fazer a cirurgia de troca de sexo] que pague de seu próprio bolso. Além disso, homossexualidade não é doença.”

João Campos afirma que, se todas as reivindicações dos grupos homossexuais e congêneres fossem atendidas, o país viverá “uma ditadura dos homossexuais”. “Se todas as demandas dos gays do país têm de ser consideradas legais, tudo o que for contrário a elas será visto como irregularidade”, declarou o tucano.     

Já o presidente do grupo Estruturação (grupo LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros – de Brasília), Milton Santos, avalia que a objeção dos deputados revela mais uma preocupação religiosa e falta de conhecimento do que apreço pelo interesse público.

“Acho que alguns parlamentares se baseiam em fundamentos bíblicos, religiosos, para questionar direitos conquistados pelo grupo LGBT”, criticou Milton, dizendo que já enfrentou situações semelhantes envolvendo congressistas. “Em geral, o Congresso tem um olhar para a população não se baseando no que a Constituição rege. Alguns parlamentares não se preocupam em se informar a respeito de certos assuntos.”

Motivo ético

Miguel Martini contesta que sua iniciativa seja baseada em questões religiosas. Segundo o deputado, motivos não faltam para barrar a realização de cirurgias de mudança de sexo pelo SUS.

“É um motivo lógico, de um claro bom senso, e diria que quase ético. Na medida em que o governo está buscando recursos para a saúde, com vários problemas no setor, uma coisa dessas é uma ofensa à população”, disse o líder do PHS, apelando à realidade social para reforçar sua argumentação. “Eu presido uma entidade oncológica. As pessoas com câncer não conseguem fazer as cirurgias previstas no SUS”, acrescentou.

Outra razão apontada por Martini é o custo da cirurgia de mudança de sexo (cerca de R$ 1,5 mil), além da suposta falta de premência do problema. “É uma coisa caríssima, um processo muito complexo. E quem é homossexual não tem risco de morte porque é homossexual”, alegou o deputado, dizendo ser até compreensível que países desenvolvidos, com eficiente estrutura de saúde pública, ofereçam o serviço aos cidadãos.

“Mas é inaceitável em um país com os problemas do Brasil. Isso [a operação] é um luxo, uma agressão à sociedade. Isso é um acinte contra o povo brasileiro, contra o cidadão que não tem dinheiro, não tem atendimento, está sofrendo dor, muitos estão morrendo nas filas do SUS”, arrematou o deputado, acrescentando que o procedimento contraria o artigo 129 do Código Penal Brasileiro – o Decreto Lei n.º 2.848, que define pena de detenção de três meses a um ano para quem “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”.

Além disso, argumenta Martini, o segundo parágrafo do artigo 129 também estabelece que a pena é de “reclusão de dois a oito anos” se a lesão corporal é resultado, entre outras hipóteses, de “perda ou inutilização de membro, sentido ou função”.

Mais responsabilidade

O coordenador-geral de Média e Alta Complexidade – divisão do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde –, Joselito Pedrosa, disse ao Congresso em Foco que é preciso ver com mais seriedade a Portaria 1.707, uma vez que ela facilita sobremaneira o procedimento de troca de sexo.

“Na realidade, o indivíduo pode ser um travesti com problemas temporários, e não ser um transexual. Ou seja, em um momento de empolgação, porque está na moda, ele pode decidir fazer a cirurgia”, advertiu Pedrosa, para quem conseqüências “seriíssimas” podem resultar do entusiasmo momentâneo, como suicídio e complexos problemas psicológicos. “É uma cirurgia irreversível. A responsabilidade sobre o processo é muito grande.”

Um dia após a publicação da Portaria 1.707, a Secretaria de Atenção à Saúde editou outra norma (Portaria 457) para regulamentar as diretrizes do novo procedimento a ser adotado pelo SUS. De acordo com as regras do ministério, quatro instituições públicas de saúde são consideradas aptas para realizar a cirurgia de troca de sexo: o Hospital das Clínicas de Porto Alegre; a Universidade Estadual do Rio de Janeiro; a Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; e o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás.     

Pedrosa disse não haver ainda registros de cirurgias de mudanças de sexo por meio do Sistema Único de Saúde, mas admite que algum procedimento já pode ter sido realizado. “Localmente, não temos como saber”, concluiu, explicando que, à época da publicação da portaria, alguns potenciais pacientes já haviam iniciado os passos para a cirurgia, como determina o documento, com acompanhamento psicológico e análise clínica.

Ministério defende norma

Além do Departamento de Atenção Especializada, a reportagem buscou informações na Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS e na Secretaria de Atenção à Saúde, ambas vinculadas ao Ministério da Saúde. De acordo com a Mesa, o ministério não dispõe de um órgão que centralize informações sobre o processo transexualizador, como o número de eventuais beneficiados pela portaria – ou se alguma cirurgia de mudança de sexo já foi realizada.

A assessoria do ministério rebate, porém, o argumento de Miguel Martini de que a inclusão da cirurgia de mudança de sexo no rol dos procedimentos do SUS representa um desperdício de recurso público. Segundo a pasta, o valor do procedimento gira em torno de R$ 1,5 mil – o cálculo se baseou em outros serviços já dotados pelo SUS, e não se refere apenas à intervenção cirúrgica.

“Não há motivo para que o Estado não assista pessoas que sofrem física e emocionalmente, quando o assunto é a necessidade em saúde”, argumenta o ministério. Além disso, segundo a assessoria, o próprio Conselho Federal de Medicina reconhece que a cirurgia de mudança de sexo não é mais vista como procedimento experimental, e sim como prática clínica.

O presidente do grupo Estruturação, Milton Santos, lembra que os diversos problemas de identidade sexual têm nome e explicação científica, e que sua natureza explicaria a necessidade de mais atenção pelas instituições de saúde, bem como a conveniência da portaria do Ministério da Saúde.

“Quando a gente fala de transexuais, existe uma coisa que os médicos da psique, digamos assim, chamam de disforia de gênero”, disse Milton, referindo-se à chamada “neurodiscordância de gênero”, anomalia neuropsicológica provocada por disfunções como hermafroditismo e intersexualismo (genitália ambígua, que requer análise médica para definir o sexo).

“Essas pessoas precisam de todo o atendimento médico necessário, com psicólogos, neurologistas e outros profissionais da saúde, de todo um processo de tratamento para, digamos, se curar”, observa Milton.

Segundo ele, é clara a necessidade de que a cirurgia de troca de sexo seja oferecida gratuitamente pelo SUS. O ativista argumenta que, se não houvesse a “demanda”, o Ministério da Saúde não teria publicado a portaria “beneficiando um grupo em detrimento de outros”.

“Originalidade”

Não é o que pensa o deputado João Campos. Para ele, se os gays têm conflitos de ordem sexual, devem receber atendimento psicológico, e não recorrer a uma “traumática” intervenção cirúrgica. Segundo o parlamentar goiano, a ajuda psicológica reconduziria o paciente à sua “originalidade”.

“Se é questão de fazer tratamento, que seja para restabelecê-lo à sua condição original, à sua originalidade, e não para aprofundar esse problema”, defendeu Campos.   

Endossando as palavras do colega, Miguel Martini diz acreditar que sua iniciativa será bem acolhida entre seus pares, e que o simples debate em torno do tema já é positivo. “Acho que fazer essa discussão já é muito bom. Acredito na possibilidade de aprovação da proposta”, disse Martini, para quem maioria dos parlamentares é formada por pessoas “sensíveis, sensatas, responsáveis".
 
 
Fonte: Câmara em Foco
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