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Projeto no Piauí busca desmistificar que Direitos Humanos são para bandidos

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Imagem: Pixabay/fotos gratuitas

O que são os Direitos Humanos? Essa simples pergunta é capaz de dividir opiniões, reforçar preconceitos e gerar conflitos em uma nação. Há quem acredite que eles servem somente para “defender os bandidos”, mas também existem pessoas que por meio deles buscam por uma sociedade fundamentada na liberdade, na justiça e na paz.

Uma pesquisa realizada neste ano pelo Instituto Ipsos, divulgada pela BBC News, a Human Rights in 2018 – Global Advisor, confirmou as declarações, mantidas pelo senso comum, de que “os Direitos Humanos apenas beneficiam pessoas que não merecem, como criminosos e terroristas”.

Essa foi a opinião de seis em cada dez brasileiros entrevistados no levantamento. Pensamento esse defendido pelo autônomo Cláudio Sousa, de 37 anos, que, apesar de não ter sido ouvido na pesquisa, afirma que “o país só está o caos porque bandido tem Direitos Humanos para defender”.   

Esse discurso errôneo sobre o conceito de Direitos Humanos incentivou a criação do projeto #IssoéDireitoHumano pela 49ª Promotoria de Justiça com o Centro de Apoio Operacional de Defesa da Educação e Cidadania (CAODEC) do Ministério Público do Piauí, para desmistifica-lo e promover a garantia da cidadania plena. 

A promotora de Justiça e coordenadora do CAODEC, Flávia Gomes, destaca que o projeto também ressalta a comemoração, neste ano, dos 70 anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (10/12/1948) e dos 30 anos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Flávia Gomes lembra que os Direitos Humanos foram positivados após duas guerras mundiais e a tragédia do holocausto. Os 30 artigos da Declaração dos Direitos Humanos preveem os direitos básicos fundamentais a todos os seres humanos em qualquer parte do mundo pelo simples fato de existirem na terra, mas desconhecidos por boa parte da população.



Promotora Flávia Gomes (Foto: arquivo/MPPI)

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, diz o artigo 1º da Declaração, que defende o “direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Nela, a escravidão é proibida, “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, e “todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação”.

Porém, quase sempre, os Direitos humanos são limitados a questão dos “Direitos dos Manos”, como aponta a pesquisa do Instituto Ipsos. Isso porque a declaração também garante que “ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”, que “todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial” e “acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. 

Titular da 49ª Promotoria de Justiça, a promotora Myrian Lago explica que o papel do Ministério Público (MP) é de esclarecer a real natureza e desmistificar o conceito de Direitos Humanos, e isso é fundamental para a sua existência.

"Nós, como MP, somos os defensores da lei, os representantes da sociedade, mas é preciso entender que o nosso papel não é falar pelas pessoas, é fazer com que elas entendam que têm voz e podem ser ouvidas”, enfatiza Lago. 

A empresária Amanda Pitta, mãe de uma criança trans, buscou a ajuda do MP ao vivenciar o direito da filha à educação ameaçado.   “O Ministério Público salvou a minha vida”, declara Pitta. Para ela, o “Ministério Público foi o órgão de atuação mais efetiva” nesta luta.

“Eu não sabia como era a atuação do Ministério Público, e fiquei sabendo porque não estava conseguindo matricular a minha filha em uma escola. Fui super bem instruída e atendida. A minha vida só mudou porque procurei por meus direitos por meio do MP. Hoje a minha filha estuda em uma escola pública e faz uso de nome social, e é respeitada. Tive também um problema na rede (pública) de saúde porque não estavam respeitando o nome social dela, procurei pelo Ministério Público, e a Secretaria de Saúde foi notificada e tudo está certo agora”, comenta Pitta.

Diferente de Pitta, que reconhecia que os direitos da filha estavam sendo desrespeitados, mas muitas pessoas buscam pelo Ministério Público para saber se possuem ou não algum direito quando passam por uma situação constrangedora. 

“As pessoas não sabem o que são os Direitos Humanos. Percebemos no dia-a-dia que se esbarra no conceito errôneo de que ‘é para os manos, os bandidos’. Percebemos que tínhamos que fazer algo para esclarecer isso”, comenta Lago. 


Promotora Myrian Lago (Imagem: Carlienne Carpaso)

#IssoéDireitoHumano 

A Declaração Universal de Direitos Humanos combate a distinção de qualquer espécie, “seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. “Todo ser humano tem direito igual de acesso ao serviço público do seu país”, ao repouso e lazer, ao bem-estar, à alimentação, vestuário, habitação e à saúde.  

Mas essa não é a realidade do país, e diariamente a mídia divulga pessoas morrendo de fome, de frio e de bala perdida; pessoas que sofrem discriminação pela cor da pele ou por andar de mãos dadas com outra do mesmo sexo; homens, mulheres e até crianças em situação de trabalho escravo. Pessoas que esperam em longas filas para atendimento médico e até morrem por isso. A intolerância religiosa que resulta na depredação de terreiros e igrejas. Essas questões ferem os Direitos Humanos, e muita gente não se dá conta disso.

“Alguns desses artigos são preservados e outros não. Isso é uma realidade mundial, não apenas do Piauí. As instituições (que atuam na defesa dos Direitos Humanos) lutam pela efetivação desses direitos, mas cada cidadão deve conhecê-los, isso é cidadania, é conhecer os seus direitos e os seus deveres para poder exigir e exercê-los”, afirma Gomes.

Com apenas 70 anos, a Declaração dos Direitos Humanos é considerado um documento novo, praticamente da metade do século XX, e precisa ser amplamente discutida e divulgada, diz Gomes. “Precisamos conhecer para preservar. Tudo que se lê nesta declaração é o que precisamos para viver. Ninguém pode ser contra os Direitos Humanos. Eu reputo a isso a falta de conhecimento”.

Cartilhas

O projeto #IssoéDireitoHumano lançará duas cartilhas para avançar nesse discurso e “fomentar a educação em Direitos Humanos na sociedade piauiense”. O projeto também articula uma Rede de Defesa dos Direitos Humanos nos níveis Estadual e Municipal. A solenidade de lançamento das cartilhas está programada para 30 de novembro de 2018, na sede da zona Leste de Teresina. 

A promotora Flávia Gomes ressalta que os Direitos Humanos ainda estão em processo de construção e efetivação, o que possibilita uma série de desrespeito a dignidade da pessoa humana e o básico para a sobrevivência mínima em sociedade.

Desde a época de sua criação, a Declaração dos Direitos Humanos é um importante suporte nas constituições dos países que se redemocratizaram, como o Brasil. Flávia Gomes acrescenta que o artigo 1º da Constituição Federal é claro ao destacar a “dignidade da pessoa humana” como direito fundamental em um Estado Democrático de Direito.


Amanda e a filha (Foto:arquivo/Cidadeverde.com/Thiago Amaral)

MPPI e Centros de Apoio Operacional
 
“Todo o Ministério Público atua na defesa dos direitos fundamentais, quando o promotor criminal atual, titular da ação penal, defende a sociedade em relação à vida, e quando fiscaliza a situação carcerária; quando o promotor defende uma escola com qualidade, pela inclusão das pessoas com deficiência, quando defende o direito do idoso, das pessoas em situação de rua, do meio ambiente e, inclusive, da proteção do patrimônio público”, detalha Flávia Gomes.

“Tudo é direito humano. Nós, do Ministério Público, defendemos esse conjunto de Direitos da Constituição Federal, dos tratados internacionais. Não é apenas um trabalho da CAODEC, mas de todos os centros de apoio operacional (CAO) e de cada órgão ministerial a defesa dos Direitos Humanos”, diz a coordenadora, como o CAO de Defesa da Saúde e Da Defesa da Infância e Juventude.

Para a promotora de Justiça e coordenadora do CAO de Defesa da Saúde, Karla Daniela Furtado, argumenta que “a saúde é o maior Direito Humano que o ser humano persegue, e que o Estado deveria assegurar porque ela não possui apenas a perspectiva de curar já que a Constituição garante o bem-estar físico, mental e social”.

“O fundamento do Estado Brasileiro é garantir a dignidade da pessoa humana. Ninguém pode ter dignidade se não tem saúde”, acrescenta Daniela Furtado, explicando que se você tem a liberdade de locomoção, mas está preso em uma doença não poderá usufruir dessa liberdade ou, por exemplo, ter direito à educação e ao trabalho se você não está com bem-estar físico e mental.

Já a promotora Lia Burgos, coordenadora do CAO de Defesa da Infância e Juventude, pontua que as pessoas costumam associar os Direitos Humanos à proteção da criança e do adolescente infrator, e esquecem que se eles chegaram a ingressar no mundo da criminalidade foi porque faltaram os Direitos Humanos básicos, como saúde, lazer, educação e alimentação.  Burgo comenta sobre o direito da criança à paternidade, que é negligenciado por muitos homens.

“É um Direito Humano a pessoa ter nome e sobrenome, mas a gente sabe que muitas crianças não possuem o nome do pai no registro de nascimento.  Então, temos o projeto ‘Eu tenho nome e sobrenome’ para estimular a paternidade responsável e os pais podem fazer exame de DNA pelo Ministério Público, de forma gratuita, para amigavelmente confirmar e assumir a paternidade; outros Direitos Humanos advém disso como o de alimentos, de convivência familiar e comunitária”.


Procurador-Geral de Justiça, Cleandro Moura (Imagem: Carlienne Carpaso)

Guardião da Sociedade

Para o Procurador-Geral de Justiça do Estado do Piauí, Cleandro Moura, a Constituição Federal refletiu um marco histórico no que diz respeito à sociedade e aos Direitos Humanos, bem como a Declaração dos Direitos Universais, principalmente no âmbito do Ministério Público ao fortalecimento da instituição.

“O MP, como eu gosto de dizer, se tornou o grande guardião da sociedade. E os direitos difusos e coletivos, individuais homogêneos, se referem àqueles direitos que não são exercidos para o cidadão de forma individual, mas pela coletividade”.

A promotora Myrian Lago se lembra do conceito de Hannah Arend: a igualdade não é um dado, é um construído. “As pessoas colocam uma ideia na cabeça, ficam presas nas suas próprias perspectivas e não vê a realidade do outro, do coletivo. É a chamada modernidade líquida, na qual as individualidades são levadas ao extremo: eu me preocupo com o meu quadradinho sem pensar no vizinho; claro, não são todos que pensam assim, mas é o que prevalece”.  

“Qualquer promotor de Justiça, de qualquer área, trabalha com o Direito Humano. O nosso papel também é de esclarecer, de previr eventuais abusos, é claro que sempre é muito triste ter que bater em cima da mesma tecla como fazer as pessoas entenderem que é proibido estacionar em uma vaga para pessoa com deficiência se ela não possui nenhuma limitação, por mais que seja por ‘um minutinho’”.

“São pequenos gestos que a gente sente a necessidade de estar esclarecendo sempre. Por isso, a campanha #IssoéDireitoHumano deve ser permanente porque outras gerações vão vir e as pessoas devem estar continuamente esclarecidas que Direitos Humanos não são direitos de bandidos, que Direitos Humanos são direitos universais e indisponíveis inerentes a nossa existência”, finaliza Lago. 

 

Carlienne Carpaso
[email protected] 

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