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Famílias perdem arrimo, se desestruturam e veem renda ir a zero após mortes por Covid

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Foto: Estadão Conteúdo

A pandemia chegava ao Brasil, no começo de 2020, quando duas notícias no mesmo dia mudaram completamente a vida da dona de casa Júlia Rita Martins, 51. Às 6h30, ela soube que o filho de 25 anos, que trabalhava como missionário na Espanha, havia morrido de pancreatite. Às 11h30, o marido de 71 anos morreu no Rio de Janeiro, vítima da Covid.

"Quando meu filho precisou ser internado, meu marido começou a sentir os sintomas da Covid. Levamos ele no hospital, mas deram um remédio para febre e mandaram voltar para casa. Tudo se complicou rápido e ele nem chegou a ir para a UTI", conta Júlia, que era casada havia 26 anos e comemorava as bodas de prata.

Eles que colocavam a comida na mesa. O filho ganhava as ofertas pelo trabalho na igreja e enviava para a família no outro continente, enquanto o marido, aposentado, trabalhava com restauração de tapetes. Era um artesão de primeira.

"Meu filho estava muito feliz de ir para África e depois para a Europa. O sonho dele era levar a gente para lá", conta a matriarca, que agora só tem o caçula, de 20 anos.

Sem os dois, a família passou a viver de doações de amigos e parentes e do auxílio emergencial do governo federal. Só nove meses depois conseguiram a pensão do pai, que é menos da metade de antes –viram os R$ 3.500 mensais minguarem para R$ 1.100. "Não está fácil para manter, tem sempre uma pendência, uma conta atrasada", conta Júlia, que não teve condições de ir ao sepultamento do marido e até hoje não recebeu as cinzas do filho.

"É uma dor muito grande, a gente para de achar brilho nas coisas. Um não chegou a saber da morte do outro. Por mim mesma, eu não aguentaria viver isso, mas o amor de Deus me sustenta", diz ela.

Neste final de semana, o Brasil ultrapassa 500 mil mortos por Covid-19, pouco mais de um ano após a chegada do vírus no país. A casa de Júlia não é a única que convive com a perda do arrimo de família –e tem que lidar com a falta emocional e da renda.

A vacina demorou a chegar e o tratamento foi negado à mãe de Andressa Evangelista, 23. Com 40 anos, diabética e hipertensa, ela entrou para essa triste estatística no dia 16 de maio deste ano.

Antes, procurou uma unidade básica de saúde no Capão Redondo, periferia da zona sul da capital paulista, quando sentiu os primeiros sintomas, mas só recebeu uma receita de xarope e loratadina (um antialérgico). Não foi feito o teste para detectar a Covid.

Poucos dias depois, a falta de ar sinalizava que ela tinha 70% do pulmão comprometido pela doença. A manicure e mãe solo deixou um filho de 8 anos, duas filhas de 23 anos e dois netos com 7 e 1 ano.

Com a pandemia, a família que mora numa casa de um só cômodo já precisava de doação de cesta básica para sobreviver e via faltar a carne –mas nunca o arroz e o feijão.

"Minha mãe era tudo para mim. Ela assumiu toda a responsabilidade sozinha e sempre dava um jeito, não deixava faltar. Ficou tudo mais difícil, na parte financeira e na vida", conta Andressa, que agora cria o irmão mais novo.

Já na casa da enfermeira Melissa Fernandes, 35, a referência era o pai, que morreu de Covid em maio do ano passado, aos 61 anos. "Mudou toda a estrutura familiar. Meu pai era o chefe, o nosso alicerce. Vivia para a casa, era saudável, não bebia, não fumava", conta.

O baque financeiro também foi grande. Era o patriarca quem tinha há quatro décadas uma oficina mecânica que garantia a renda dos quatros filhos e da mulher, em São Mateus, na zona leste de São Paulo. Hoje, são os filhos de 26 e 27 anos que tentam manter o negócio de pé e as contas em dia.

Mel não se conforma que seu trabalho era instruir equipes sobre como se proteger do vírus da Covid, mas não foi suficiente para salvar o próprio pai, que se infectou na oficina.

"Depois de dois dias, levei à força para uma unidade básica, mas os profissionais na época estavam despreparados, ninguém sabia o que fazer. Deram uma injeção de dipirona, uma receita de azitromicina [agora sabidamente ineficaz contra a Covid] e mandaram ele de volta para casa", conta.

Quem também recebeu a orientação e o medicamento errado foi o marido de Carla Bastos Meireles, 41, em Santa Cruz, no Rio. Aos 47 anos e sem comorbidades, ele foi mandado para casa com uma receita de azitromicina, cisteína (um suplemento) e dipirona. Em 24 horas, estava internado em outro hospital, onde ficou quatro dias aguardando um leito de UTI, que não veio a tempo, em maio do ano passado.

"Ele nem chegou a ser intubado, estava tudo lotado, não tinha vaga", explica Carla, que era casada com ele havia 27 anos. Ela e os dois filhos, de 17 anos e 7 anos, viviam da renda do patriarca autônomo. Ele tinha uma Kombi com a qual fazia fretes e não pôde parar de trabalhar na pandemia.

"Se não trabalhasse, não tinha dinheiro, era a única renda da família. Sem ele, tirei as crianças do colégio particular, vendi a Kombi, um aparelho de som. Recebi auxílio emergencial e minha sogra me ajudou", conta. Isso até ela encontrar um emprego, sete meses depois. Hoje, como supervisora de restaurante, ganha a metade do que o marido trazia no fim do mês.

"Foi e está sendo horrível, parece que não passa nunca. Ele era um excelente marido, ótimo pai", diz. Ela conseguiu abrir a lojinha de pastel que ele construiu –um sonho dos dois. "Ele nem chegou a ver a loja pronta, mas eu dei continuidade para nós dois."

 

THAIZA PAULUZE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) 

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