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Sem calendário, jogadores migram para empresas de ônibus

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Fábio Lima/Cidadeverde.com
Buda, ex-Flamengo, virou cobrador e artilheiro da Taguatur
 
O sonho de ser jogador de futebol certamente passou, nem que seja por pouco tempo, na cabeça de muitos brasileiros. Fama, dinheiro, melhor condição de vida para a família. Um futuro almejado por milhares e conquistado por poucas dezenas. Quem não consegue sucesso acaba seduzido com a estabilidade financeira e até melhores salários em um emprego mais humilde. No Piauí, os desiludidos com o futebol estão migrando para outras áreas. Pegando o ônibus, literalmente.
 
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transportes Rodoviários - Sintetro -, são mais de 20 os ex-jogadores profissionais que atuam no torneio amador da categoria. Boa parte deles revelados nas escolinhas de clubes como o Flamengo, que também sofre concorrência com a fábrica Houston. Anos atrás, o atacante Boiadeiro foi artilheiro de competição na Itália, mas vestindo a camisa do Grupo Claudino.
 
Carga horária com folgas definidas, salário às vezes até maior que no clube, e estabilidade durante todo o ano são alguns dos atrativos que os desiludidos buscam, em sua maioria nas empresas de ônibus. "Um garoto desses joga um campeonato de quatro meses. Depois ele fica sem trabalhar e recebe pressão da família, e tem que procurar um trabalho", diz o técnico do Piauí Esporte Clube, Augusto Melo, que se deparou com uma situação inusitada no começo do ano.
 
Na pré-temporada do Campeonato Piauiense, o Sindicato dos Rodoviários reuniu alguns de seus melhores nomes para um amistoso com o Piauí. "Do outro lado estava o Willame, um zagueiro jovem, 22 anos, com quem eu já trabalhei. E tinha outros nomes como o Paulinho, que veio de José de Freitas, e hoje está lá também", conta Augusto. A lista nos últimos anos é bem mais extensa que a impressão do treinador.
 
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Everaldo: futebol do Piauí precisa de calendário para todo o ano
 
O diretor de esportes e lazer do Sintetro, Renato Almeida, se empolga. "Nós temos times que poderiam disputar até o Campeonato Piauiense". Exagero ou não, o torneio dos rodoviários é um dos mais fortes entre os amadores realizados em Teresina. Na década passada, o time do Sindicato chegou a ser vice-campeão em competição nacional promovida pelo Sest/Senac. Tempos em que o volante Ajuri Dias, ex-Imperatriz e River, trocou a bola pela catraca.
 
"Foi em uma época que o River treinava só um turno e eu já era cobrador. Depois o River começou a trabalhar em dois turnos e não deu para conciliar. Como pai de família, só os vales não davam para sustentar a situação", diz o sindicalista, que hoje representa o Piauí nacionalmente na Confederação dos Sindicatos dos Rodoviários.
 
Ajuri é contemporâneo de Everaldo Cunha, que hoje na presidência do Flamengo cansou de ver seus atletas deixarem o clube por outros empregos e tem na ponta da língua o motivo do problema. "Os clubes só tem três ou quatro meses de campeonato. Lá, cada empresa tem um time, e eles (jogadores) pedem emprego porque sabem que há um campeonato, e vão continuar jogando", afirma o dirigente, defensor da realização de outro torneio no segundo semestre, privilegiando atletas locais.
 
Por sinal, a debandada começou a ganhar força em 2007, quando a Copa Piauí, criada para valorizar os jogadores piauienses, perdeu força. O torneio surgiu em 2006 restringindo a contratação de reforços federados em outros estados e priorizando a base.
 


Craques de bola querem ficar nos ônibus
 
Arquivo Jornal O Dia
Piaba, ex-River e Comercial, virou cobrador
 
Uma das perdas mais recentes dos clubes profissionais foi o atacante Buda, 24 anos, revelado pelo Flamengo. Ele ficou no rubro-negro até 2006, quando o time ainda estava na Segunda Divisão do Estado, e chegou a dividir os treinos com o emprego de cobrador na empresa Taguatur, até o dia em que não deu mais para conciliar. "O futebol em Teresina é muito complicado. Havia desinteresse, a gente não sabia quando ia receber. Até que apareceu a proposta e comecei a jogar o campeonato dos rodoviários", explica.
 
Quem viu a promessa com a camisa rubro-negra encontra o jovem vestido hoje no uniforme azul, recebendo os vales na linha Lourival Parente. No ônibus, ele chega a passar perto do campo do Parentão, onde treinava diariamente, mas para onde não pensa em voltar. "Estou tranquilo aqui, pretendo continuar mesmo na empresa", garante Buda, há quase três anos no emprego.
 
Campeã do ano passado, a Taguatur tem hoje um dos times mais fortes do torneio. Além de Buda, a equipe conta com o atacante Rondinele, funcionário há sete anos da empresa. Campeão piauiense em 1996 beijando a camisa do River, no ano do cinquentenário do tricolor, ele passou de jogador a cobrador, e depois motorista. Aos 32 anos, é considerado por colegas ainda melhor que outros em atividade, mas não pensa em voltar aos gramados.
 
"Estou tranquilo, no meu lugar. Pode não ser muito, mas é um trabalho digno. Já dei a minha contribuição, e hoje o treinamento seria muito diferente. O sindicato tem um campeonato bom, bem visto", afirma Rondinele, filho de Zuega, que jogou no meio-de-campo do Flamengo no final dos anos 80. Com o pai, ele acompanha o futebol piauiense de hoje e reclama da falta de valorização dos profissionais, que buscam o reconhecimento com o emprego nas empresas de ônibus.
 
"Na mídia, só falam na base, mas na realidade você não vê base nenhuma. Tem jogador que não tem vale para ir treinar, e os clubes só contratam jogadores de fora que demoram para se entrosar. Por essas e outras que o nosso futebol está assim", lamenta Rondinele, que joga em torneios de bairros enquanto o campeonato dos rodoviários não começa. O torneio será de maio a dezembro.
 
O relato lembra o veloz meia Piaba, que vestiu a camisa do River. Técnicos de fora davam preferência a seus reforços, e o jogador ia para o banco de reservas, ou até mesmo era dispensado. Semanas depois, se vingava marcando gols pelo Comercial de Campo Maior. Mais algumas semanas e não tinha clube. Seu clube hoje é o dos rodoviários. Há mais de dois anos, ele trocou as equipes da capital pela empresa São Cristóvão, da qual virou cobrador. Para muitos passageiros, um anônimo. Na empresa, encontrou entre os colegas o reconhecimento que faltou aos dirigentes e técnicos.
 

Fama dos rodoviários já dura uma década

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Renato quer melhorar ainda mais o torneio dos rodoviários
 
Nomes ligados ao futebol sabem explicar os motivos para a debandada. No entanto, ninguém soube determinar porque as empresas de ônibus são as mais visadas. Para Ajuri, tudo começou com a montagem da seleção dos rodoviários nos anos 90, que aproveitou a inconstância do futebol piauiense, especialmente da capital na época, para se reforçar.
 
"No período em que eu saí do River, a gente montou a seleção dos rodoviários. Como eu já tinha acesso a alguns jogadores profissionais, a gente começou a convidar eles para a seleção. Trouxemos o Netão, que era zagueiro do Flamengo, o Paulão, que era goleiro do River", relata Ajuri. E daí, começou a fama.
 
Se antes sindicato e empresas de ônibus buscavam os jogadores, a fama do campeonato fez com que hoje os sem trabalho após o fim da temporada buscassem emprego. "Os jogadores vão para torneios nos bairros e encontram os que fazem parte do sistema, e quando surge a oportunidade a empresa de certa forma nos facilita isso, e realiza todo o treinamento adequado para que eles entrem na profissão", explica Renato. Ele confessa que, anos atrás, até o meia Maradona, hoje no Piauí, já tentou emprego na baixa temporada.
 
Hoje, Renato demonstra certa preocupação. O Sindicato sustenta o torneio com recursos próprios, e chega a sofrer concorrência com competições de bairros, patrocinadas por empresas, com premiação mais tentadora. "Queremos fortalecer o torneio desse ano, divulgar mais, buscar apoios, conseguir iluminação para o nosso campo e até voltar com a nossa seleção", afirma o diretor, que cogita até parcerias para, quem sabe, montar um time com os profissionais no Campeonato Piauiense.
 
Fábio Lima - reportagem especial
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