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Gilberto Gil faz 'strip-tease' poético em novo livro

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Foto: Daniel Pinheiro / AgNews

O tempo, a morte, o amor além do sexo, a espiritualidade, o misticismo sem religiões, a beleza do transitório e a crença no poder da festa. O livro "Todas as Letras", de Gilberto Gil, organizado por Carlos Rennó e agora relançado pela Companhia das Letras em edição ampliada, evidencia os temas constantes na trajetória do compositor baiano, que completa 80 anos em 26 de junho. Em fase de pré-venda, o livro de 500 páginas chega às livrarias no início de julho.

De "Felicidade Vem Depois", sua primeira canção, de 1962, à "Refloresta", a mais recente, de 2021, Gilberto Gil expôs suas artes de cancionista em mais de cem horas de conversas com Rennó -66 horas para a primeira edição, em 1996, cerca de 12 para a segunda, em 2003, e outras 28 ao longo de 2021.

Nas últimas duas décadas, o tropicalista pôs letras em 86 novas músicas. A antologia completa teve um acréscimo de 140 comentários, totalizando cerca de 350 canções analisadas. Assim, temos um caso solitário na música popular e no mundo editorial, mesmo em termos internacionais, de revelação detalhada do mistério da criação poética de um grande compositor. Nenhum outro músico de sua geração lançou uma antologia de letras com semelhante ambição e desnudamento.

No livro, Gil descreve a circunstância da criação de "Não Tenho Medo da Morte" num hotel da cidade espanhola de Sevilha, em 2007. Provocado por Rennó, ele narra a construção do ritmo e reflete sobre sua relação com o sentimento "de não ter medo da morte -ao te-lo", além das diferenças entre "morrer como ato e a morte como um destino".

"É um tema que todos nós encaramos. São bichinhos que nos fustigam a interioridade o tempo todo. Alguns com atitudes receosas, querendo se afastar, não querem levar essa conversa avante. Outros, pelo contrário, querem especular sobre isso. Eu sou um especulador. Eu gosto, tenho vários momentos de especulação sobre a questao", admite Gil.

A organização em ordem cronológica favorece a observação das transições existenciais do homem no corpo das letras. O Gilberto misterioso se transforma, passo a passo, em versos a céu aberto. Suas canções reflexivas se expandem a partir da experiência da prisão, em dezembro de 1968, no cerco militar ao tropicalismo. Em sua carreira, são casos exemplares "Preciso Aprender a Só Ser", de 1973, "Copo Vazio", de 1974, ou "Tempo Rei", de 1984.

De 1969 a 1975, descontando a lacuna do exílio, Gil atravessou um período de intensos diálogos religiosos e filosóficos com os amigos Rogério Duarte, designer tropicalista, e Roberto Pinho, antropólogo, em torno de questões como a eubiose, a meditação e a vida em comunidade. Essas inquietações sobre o ser no mundo transbordam em canções como "Objeto Semi-identificado", com Duarte, e "Objeto Sim, Objeto Não", de 1969, "Refazenda" e "Retiros Espirituais", de 1975.

A dor do encarceramento e o mergulho musical no exílio em Londres expandiram a sua busca pela extroversão nos anos 1970. Enquanto aflorava a afirmação de sua negritude, ele caía na dança em "Refavela" e "Refestança", de 1977, e "Realce", de 1979. "Cérebro Eletrônico" e "Parabolicamará" são jóias de outro eixo de sua obra -a preocupação com as utopias e distopias tecnológicas.

A gênese de velhas canções não contempladas nas edições anteriores ganhou relevo nos novos depoimentos de Gil. Com especulações espíritas, "No Céu da Vibração", rock progressivo composto para Elis Regina, em 1979, abre um instante reflexivo sobre a finitude. A música, diz ele, é antecipatória de todo um mergulho no sentido quântico da existência, que vem depois desenvolvido em vários versos, várias canções. A ideia da finitude, de começo, meio e fim não importar. Não importar como se o alef, o antes, e o depois já estivessem aderentes a toda a ideia e todo o percurso do ser. A vibração, o movimento, a noção do movimento vibratório -onda, particula".

As técnicas de ritmo e metrificação têm peso na construção de sua musicalidade. "Todas as Letras" demonstra que a exposição da subjetividade de Gil foi erguida com a racionalidade de seu labor poético. As entrevistas se beneficiam da intimidade de Rennó com o ofício de letrista, no qual é um mestre em sua geração, vertendo para o português clássicos da canção americana. O repertório de poetas admirados que Rennó admira abrange Oriente e Ocidente. De sua autoria, o texto "Jogos e Jóias de Chico", incluído no livro de ensaios "O Voo das Palavras Cantadas", de 2014, é a melhor análise das técnicas poéticas mobilizadas por Chico Buarque como cancionista.

Gil esteve em dois momentos transformadores de Rennó. Primeiro, com o impacto musical e existencial do álbum "Expresso 2222", de 1972. Depois, nos anos 1990, em São Paulo, o artista baiano o apresentou à macrobiótica no restaurante Satori, do mestre japonês Tomio Kikuchi. E a essa dieta Rennó permaneceria mais fiel que o próprio Gil. Ao propor "Todas as Letras" ao amigo, Rennó pensou em uma mescla do livro "Lyrics on Several Occasions", de Ira Gershwin, com as antologias de letras de Cole Porter, Richard Rodgers e Lorenz Hart e dos irmãos Gershwin.

Na radiografia do Gil letrista, fica evidente seu primeiro fascínio por Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac, uma influência perceptível nos aspectos formais de suas letras de juventude. Três episódios determinaram mudanças em seu ofício -as letras de Vinicius de Moraes para as canções da bossa nova; a amizade com Caetano Veloso, que o apresentou à poesia moderna de João Cabral de Melo Neto; e o contato com a poesia concreta, no curso do tropicalismo, em São Paulo.

No início da carreira, Torquato Neto, Caetano e José Carlos Capinan são letristas centrais em seu desenvolvimento artístico. Sua voz individual de poeta passa a se afirmar nos saltos de "Lunik 9", de 1966, "Ele Falava Nisso Todo Dia" e "Domingo no Parque", de 1967.

Canções como "Batmakumba" -com Caetano-, de 1968, "Alfômega", de 1969, "Língua do Pê", de 1970, e "Back in Bahia", de 1972, trazem experimentos de linguagem que expõem sua assimilação singular da poesia concreta. O livro ilumina uma continuidade dessa influência em "Pentagono", de 2019, criada para o grupo Corpo: "corpo/ carpa/ corvo/ cravo/ cedro/ corpo/ perna/ braco/ fauna/ flora/ corpo/ palco/ pedra/ preto/ porco".

A regra de só comentar letras suas é quebrada com "As Camelias do Quilombo do Leblon", composta com Caetano após a visita dos tropicalistas a regiao da Faixa de Gaza, na turnê conjunta em 2015. Nesse ponto, a sua voz diverge de tendências dos movimentos negros críticas às comemorações do 13 de maio, o Dia da Abolição da Escravidão.

"Eu sou partidario do sentimento do Caetano, que coincide com o de Joaquim Nabuco e tantos outros, e que reitera uma segunda Abolicao. Ou seja, uma complementacao, uma completude. Eu acho muito importante o episodio da Abolicao, o proprio envolvimento da princesa Isabel e o modo como aquilo tocou, numa certa forma, o tecido social", avalia Gil na conversa com Rennó.
"A semana da abolição teve um papel extraordinário nesse sentido. Os negros todos foram para a rua celebrar uma coisa, pela primeira vez, acolhidos integralmente pelos brancos, pelos senhores e tudo mais. A festa negra é adotada na sua integridade pela primeira vez naquele momento. Essas são coisas importantes. O sentido cultural da abolição. Não é só o sentido político, mas o cultural", ele disse.

"Esse dialogo, essa mutua autorizacao que o simbolo das camelias exatamente revela, e importante; tudo isso importa muito e precisa ser considerado pelos movimentos negros, queiram eles o que venham a querer."

"Todas as Letras" não se contenta em ser uma antologia. É um strip-tease poético de um mestre atemporal da canção.

TODAS AS LETRAS (NOVA EDIÇÃO AMPLIADA)
Quando Lançamento em 8 de julho
Preço R$ 199,90 (em pré-venda); R$ 49,90 (ebook)
Autor Gilberto Gil
Editora Companhia das Letras
Organização Carlos Rennó

Fonte: Claudio Leal/Folhapress

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