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O dia de um cadeirante no transporte (D) Eficiente em Teresina

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O desejo de recuperar a liberdade, o direito de ir e vir, é muito forte para um deficiente físico. Uma simples cadeira de rodas, mesmo com suas limitações, abre um novo mundo de possibilidades para quem antes só tinha o espaço de uma cama. Poder pegar um ônibus é uma possibilidade de ir além. Para os portadores de deficiência de Teresina-PI, o Transporte Eficiente – veículos que transportam portadores de deficiências como táxis, mas ao preço de ônibus coletivos – devolveu essa sensação de liberdade.

O tetraplégico Valdenício Martins da Silva, 38 anos, conhecido como Valdek, só voltou a ter vida social, depois da instalação deste transporte na capital piauiense.  “Voltei a trabalhar, comecei a ir mais vezes ao Centro comercial, ao shopping e, graças a Deus, retornei à Igreja”, descreveu.

Acidente de Valdek ocorreu há 20 anos
No feriado 21 de abril de 1989, o jovem Valdenício Martins da Silva saiu para procurar o pedaço de um galho dentro de um matagal, próximo ao rio Parnaíba. Era para ajudar a mãe a desentupir um cano. Ao ser atacado por abelhas ele correu e, desesperado, saltou nas águas do rio, na sul de Teresina-PI. Com o mergulho, Valdenício quebrou a 3ª e 4ª vértebras da coluna cervical e sua vida mudou completamente.
Aos 17 anos, Valdeck, como é conhecido, ficou sem mobilidade no corpo: não mexia os ombros, braços, pernas, mãos, ele estava tetraplégico. “Eu tinha mil planos, mas tudo foi, literalmente, por água abaixo”, recorda.
“A principio, eu não sabia o que tinha acontecido. Como eu não ia poder mais mexer sequer os braços? Comecei fisioterapias: fiz uns três ou quatro anos, só que com elas eu não voltaria a ter movimentos; apenas meus nervos não atrofiariam e eu queria bem mais. Segui um conselho: fisioterapia não é vida. Viva sua vida e foi isso que eu fiz”, relembra Valdek.
Duas décadas depois, Valdek faz locuções independentes e trabalha com arte gráfica num computador instalado na sala da casa onde mora com a mãe e o sobrinho, no bairro Promorar, zona sul de Teresina. Ele conseguiu, sozinho, recuperar 30% dos movimentos das mãos. “Sinto meu corpo, mas não tenho movimento na maior parte dele. Mexo os três dedos de cada mão e com a cadeira motorizada consigo me tornar um pouco independente”, destacou.

O Transporte Eficiente existe desde 2001, os três primeiros veículos (modelo Kombi) foram comprados pelo Setut (Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Teresina) e entregues para a Prefeitura de Teresina gerir.

Na época, uma lista de deficientes que gostariam de ter acesso ao veículo foi confeccionada e de lá para cá essa relação só tem aumentado. Hoje, são mais de 800 pessoas no cadastro, enquanto os cinco veículos atendem no máximo 250 pessoas. Principalmente aquelas que trabalham, estudam ou vão ao médico regularmente. Esse transporte funciona por agendamento: os beneficiários devem marcar a hora que vão sair de casa e a hora que querem retornar.

Somente na capital piauiense, de acordo com o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2002, pelo menos 106 mil pessoas são portadoras de alguma deficiência: física, mental ou motora.

Transporte Adaptado Coletivo

Em 2008 foi implantado o Transporte Coletivo Adaptado e Valdek começou a utilizá-lo, apesar dos desafios da falta de acessibilidade para se chegar até ele. “A desvantagem do Coletivo Adaptado é que ele não vem à sua porta, como o Transporte Eficiente. E com as ruas de calçamentos, as calçadas irregulares, praças e paradas de ônibus, se você não tiver uma cadeira motorizada é difícil sair de casa”.
 
Mesmo assim resolveu ceder sua vaga no Eficiente diário para as pessoas “que precisavam mais” e resolveu pegar os ônibus coletivos. “Eu abandonei por questão de consciência mesmo. Mas, esse desafio custou caro. É uma barreira imensa que enfrento todos os dias”, fala com convicção.
 
De casa para a parada de ônibus são três quarteirões, percorridos entre sete e oito minutos. Sua rua foi asfaltada, mas além das galerias entre uma rua e outra há um quarteirão que ainda é calçamento. “Meus pneus estão arrebentados. Tenho que trocá-los de seis em seis meses, por causa dos calçamentos e só um custa mais caro do que de muitos carros: R$ 150,00”.

 

Não só o calçamento, mas as calçadas das praças são cheias de buracos e Valdek se arrisca pelo asfalto, dividindo espaço com os carros estacionados e com os que estão passando. No caminho, quando encontra uma rampa (por acaso), sobe para a calçada da praça. Mas, mesmo já avistando a parada tem que descer para rua novamente, porque um buraco o impede de passar...
 
Ao chegar à parada, há outro buraco atrapalha sua ida para a cobertura, Valdek se “conforma” com uma vaguinha ao sol. 


 
O locutor, que também é vice-presidente da Ascante (Associação dos Cadeirantes de Teresina), é um dos poucos que se arrisca a sair de casa até uma parada de ônibus. Dos 11% da frota de Transporte Coletivo Adaptado no ano passado, menos de 3% são utilizados pelos teresinenses. A justificativa é unânime: falta de acessibilidade nas ruas e pontos de ônibus da cidade.



Até mesmo o prefeito da cidade, Sílvio Mendes, reconhece essa dificuldade. Para ele, melhorou muito em alguns pontos da cidade, como na Avenida Frei Serafim, nas ruas Simplício Mendes e Álvaro Mendes, no Centro, mas é preciso fazer muito mais. “As calçadas são particulares, mas de uso público. Era preciso uma uniformização. Mas como vou mexer na sua calçada, como a Prefeitura vai sair mexendo na calçada de todos? Ainda é inviável. É preciso consciência das pessoas e solidariedade”, comentou.
 

Prefeito Sílvio Mendes

Finalmente o ônibus chega. “Sou um privilegiado. No meu bairro possuem quatro ônibus adaptados. Mas sei que isso, infelizmente, não acontece na cidade toda”, destaca.



Calçadas em frente à casa de Valdek no Promorar, nenhuma acessível

Na hora de entrar no veículo mais desafios e espera. “Tenho que avisar que vou entrar, para o motorista abrir a porta do meio. O cobrador utiliza um controle remoto para baixar a plataforma elevatória. Dependendo do cobrador isso pode demorar um minuto ou meia hora, caso ele não saiba mexer. Quando demora, fico constrangido, já que tem outros passageiros dependendo daquele transporte para chegar a algum lugar no horário marcado. A maioria não reclama, mas você se sente mal”, acrescenta Valdek.
 
A plataforma desce, o cadeirante sobe e prende sua cadeira numa trava, coloca o cinto e espera ser transportado. Enquanto isso, o veículo tem que está com o pisca-alerta e o freio de estacionamento ligados. Depois a pessoa vai para um espaço do ônibus reservado para sua cadeira. Geralmente, o processo dura entra dois e cinco minutos.
 
“Toda vez que vou sair é assim. Pela manhã sempre faço algum trabalho em casa, ou na rua. À tarde vou à Igreja e à noite voltei a estudar. Estou terminando meu ensino médio, porque quero fazer concursos”, declara Valdek.




Acessibilidade


 
Para a promotora Janaína Rose Ribeiro Aguiar, do Centro de Apoio Operacional de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e do Idoso é preciso cumprir a Lei. “O Decreto Lei 5.296/2004 estabelece que até 2014, o transporte coletivo terrestre, ferroviário, aquático e aéreo para o portador de deficiência de forma plena ou autônoma, sendo para isso necessário adaptar terminais, pontos de ônibus, acessos, estações, aeroportos, portos e as vias principais”, descreveu.
 
Mas segundo ela, pouco foi feito. Muitas vezes o Ministério Público ingressou com ações, desde 2008 para que além do Setut, a Prefeitura também adaptasse os pontos de ônibus, as vias principais, passeios públicos, praças, etc. O processo está na 2ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública, desde abril de 2008. “Até junho de 2009, não tinha sido apreciada a antecipação de tutela que havíamos solicitado, através dos promotores da 2ª Vara. Em dezembro, ingressamos novamente, mas como não temos mais o poder de interferir, os promotores da Vara tomaram de conta”, informou.
 

Promotora Janaína Rose defende acessibilidade nas ruas

De acordo com o Secretário Executivo de Planejamento da Prefeitura, Augusto Basílio, a gestão municipal têm realizado seus projetos de reforma e criação já com acessibilidade. A prova, segundo ele, foi a mudança na avenida Frei Serafim e também a reforma na praça Rio Branco, que será entregues ainda este mês e outros projetos executados pela Prefeitura. “Tem sido uma preocupação nossa, a acessibilidade”, enfatiza.


Avenida Frei Serafim já apresenta acessibilidade em alguns pontos
 
Mas para a presidente da Ascante, Silvana Miranda, os projetos podem até possuir os pontos de acessibilidade, mas na hora da execução, não sai como o esperado. “Se nós ou o Ministério Público não estivermos em cima, eles não fazem como se deve. Não obedecem as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), ou simplesmente não fazem”, afirma. Ela citou como exemplo o novo prédio da Câmara Municipal, que não oferecia condições para deficiente visuais, como o piso tátil.
 

Susana Miranda luta por mais veículos no Transporte Eficiente

O empresário Alberlan Sousa, da empresa de ônibus coletivo Viação Piauiense, também concorda que é preciso mais acessibilidades nas vias públicas para que seus ônibus sejam utilizados. “Foram investidos R$ 15 mil a mais em cada ônibus adaptado e a conta vai para a tarifa. Os usuários que pagam, por isso, sendo usados ou não”, destacou.
 
Ele exemplificou com sua frota. “Na nossa empresa são dois ônibus adaptados circulando, um Lourival Parente-Shopping e o outro Parque Jurema-Shopping. Mas nenhum tem a plataforma sendo utilizada diariamente. Todos as vezes que os ônibus são lavados o sistema da plataforma  precisa ser ativado porque fica travando”, declarou.
 
Para a promotora Janaina Rose “uma omissão não justifica a outra. De algum lugar tinha que começar. A Lei determina que até 2014 tanto os veículos quanto os acessos a eles estejam adaptados. Se não começar uma coisa, a outra não funciona”. Segundo ela, “o próprio Setut tem que pedir, obrigar a Prefeitura a se adequar, já que foram investimentos e que precisam de retorno. Tem demanda, mas é reprimida porque a cidade não está adaptada”.

Transporte Eficiente
 
Silvana Miranda luta pela regulamentação do Transporte Eficiente. O projeto já está na Câmara Municipal para apreciação dos vereadores. “Como nossa cidade não oferece meios para nos locomovermos sozinhos, o Transporte Eficiente é a melhor saída, para tentarmos possuir um pouco de independência”, diz.

Esse tipo de transporte é defendido por todos, inclusive pelo próprio prefeito Sílvio Mendes, que já adquiriu um microonibus para ser colocado na rota e enviou a Lei para a Câmara. Os vereadores doaram um veículo para a frota, retirando 10% da emenda parlamentar de cada um para a aquisição do carro. E os empresários também são favoráveis. “É o meio mais justo e coletivo, pois leva mais de quatro pessoas de cada vez”, afirmou Alberlan Sousa.
 

Alberlan Sousa é a favor do Transporte Eficiente

Mas para a promotora um transporte não inviabiliza o outro. “Eram 106 mil portadores de deficiências em 2002, hoje esse número pode ser bem maior. E os ônibus adaptados servem não só para os deficientes, mas também para as grávidas, idosos e obesos. Vou repetir: há uma demanda que está reprimida por falta de acessibilidade”, ressalta Janaína Rose.
 
Valdek usa sua voz de locutor para reforçar. “Os coletivos são necessários para pessoas como eu tornarem-se independentes. No Transporte Eficiente existem prioridades [trabalho, escola, saúde], mas nós também queremos e temos direito ao lazer, diversão, consumo. Essa é uma luta coletiva dos portadores de deficiência, das nossas famílias, das autoridades, da Justiça, dos empresários, de todos nós”, finaliza.






Por Caroline Oliveira
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