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Desenvolvimento da tecnologia precisa vir com distribuição de riqueza, diz Gilberto Gil

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Foto: Gilberto Gil/Instagram

Atento ao desenvolvimento tecnológico em suas composições desde o fim dos anos 1960, o músico Gilberto Gil, 78, vislumbra um futuro em que as capacidades e a extensão da vida do ser humano serão ampliadas pelo avanço científico. Ele vê riscos de uma distribuição desigual das conquistas tecnológicas.
O artista fará uma palestra online entremeada por canções de sua autoria que tratam de tecnologia na quinta (10), no evento online "Caminhos para a democratização da tecnologia".
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PERGUNTA - A pandemia transformou nossa relação com a tecnologia?
GILBERTO GIL - Vários campos que vinham em desenvolvimento tiveram saltos substanciais. Principalmente nas tecnologias de comunicação. Houve o desenvolvimento do comércio online, dos aplicativos, uma intensificação da educação à distância.
No campo das comunicações, houve a facilitação de uma série de modos de contato, de intercâmbio, de linguagem, um desenvolvimento muito grande do mundo da conceituação de usos e aplicações de tecnologia. Tudo isso cresceu muito.

P. - O sr. vê esse novo cenário com otimismo?
GG - Como tudo sempre foi, há bem e mal. Ainda ontem discutíamos aqui a questão do crescimento significativo da criminalidade cibernética. A menina que trabalha conosco em casa recebeu um telefonema estranho, difícil, de alguém que ela não sabe quem é, fazendo ameaças, citando o nome do pai dela, da irmã dela. Uma coisa bem invasiva no espaço individual, possivelmente com alguma má intenção.
Tudo é bom e ruim. Igual copo de leite, que é muito bom para alguém em determinada circunstância, mas pode ser terrível para alguém que tenha alergia a laticínios.

P. - O que fazer em relação ao mal na rede, em especial em casos sensíveis como o negacionismo na pandemia?
GG - Desde os grandes produtores de tecnologia de internet, passando pelos consumidores e indo até os órgãos reguladores, todos estão de uma certa forma preocupados.
O Instagram estabeleceu suas regras. O WhatsApp apareceu agora com uma novidade. Todos tentando regulações, chamando o Estado para participar desse processo todo. Você vê, por exemplo, o [Mark] Zuckerberg [presidente-ececutivo do Facebook] tentando melhorar os serviços prestados pela companhia dele, estabelecendo um debate com os órgãos regulatórios para melhorar o atendimento ao consumidor, a questão das fake news. Tudo isso é preocupação permanente de cada vez mais pessoas na sociedade global.
O que se pode fazer é isso. A permanente atenção em relação aos usos dessas tecnologias todas, a avaliação permanente dos resultados desses usos, das correções que vão sendo feitas.

P. - Quem é contra regulação nas redes fala em liberdade de expressão, tema que também é caro a artistas. Como equilibrar isso?
GG - São critérios variados e oscilantes. Uma hora tendendo a favorecer um lado, outra hora o outro.
É uma discussão permanente sobre até onde vai essa liberdade, o que é liberdade, o que não é, qual o grau de interferência tolerável por parte da regulação, onde é que realmente a liberdade está sendo ameaçada ou quando a liberdade é ameaçada por mais liberação (risos). É tudo muito complexo. Não é uma visão linear que dará conta.

P. - Em "Cérebro Eletrônico", de 1969, o sr. diz que a máquina é muda, não chora, não anda. Será preciso atualizar a letra?
GG - Ela vai começar a mandar em vários níveis e vai ser travada pela inteligência humana em vários outros. Isso porque, de outro lado, a configuração da biociência vai se desenvolvendo, vai dando ao cérebro humano nova profundidade, nova capacidade de expansão de seus potenciais.
A contribuição que a máquina traz é equilibrada por aquilo que na existência humana não é técnico, maquínico. Esse lado vai sempre discutir com a máquina. A máquina só vai mandar sozinha, trabalhar sozinha, se o ser humano deixar, por alguma razão.
A humanidade pode decidir em determinado momento que a gente não quer mais a bioexistência, que queremos a existência maquínica, e aí entregamos tudo para a máquina. Mas, enquanto a gente apreciar essa dimensão biológica, fisiológica em que estamos, a relação com a máquina será sempre de diálogo.
Ela só vai avançar se for permitida. Essa possibilidade de desastre do tipo "2001, Uma Odisseia no Espaço", filme em que o computador resolve matar a tripulação toda, é uma situação extrema que deve estar no mapa, no elenco das possibilidades, mas que são muito remotas, porque conservamos nossas condições biológicas, de nossa cognição, na nossa corporaliedade. Por mais maquínicos que estejamos, nossa autonomia biológica ainda é muito forte, o projeto humano é muito forte.

P. - Então acredita que uma integração maior entre homem e máquina irá acontecer?
GG - Isso aí cada vez mais. É disso que estamos falando. São inúmeras as possibilidades que vêm. Desde o campo do desenvolvimento do código genético até a nanotecnologia e suas possibilidades que incluem injetar submarinos para navegar nossas veias e artérias para buscar deficiências em qualquer parte de nosso corpo, atacar vírus e bactérias. Até a questão da saída da terra. O chinezinho [sonda espacial que chegou ao solo marciano em maio] não está lá em Marte mandando notícias, dialogando, perfurando o solo para ver se já não teve água ali?
Podemos ver desde a expansão das fronteiras do Universo em que o ser humano se coloca como protagonista até a cura das doenças, a extensão da vida por um tempo maior.
Tudo isso tem de ser contratado socialmente. É um processo enorme sobre o qual não adianta ficar dando palpite.

P. - Esse avanço pode chegar de forma desigual?
GG - Aí é que está. Isso não abole os diversos problemas que a sociedade humana já tem, que vêm da política, da economia, da distribuição da renda, da produção de riqueza. Estamos falando aqui de uma acumulação de uma riqueza extraordinária que vem por aí. Mas e a distribuição dessa riqueza, como fica?
Isso não vem embutido no desenvolvimento técnico e científico. Aí entra a dimensão humana. Valores, entendimento sobre o que é a vida, a fraternidade. Não são questões que podem ser resolvidas pela ciência e pela técnica.

P. - O sr. defendeu durante sua gestão do Ministério da Cultura a banda larga como necessidade básica. Como evoluímos em relação a isso?
GG - Todo o empreendedorismo privado brasileiro, junto com o empreendedorismo do Estado, fizeram o possível, mas não deram conta ainda de resolver o problema.
Faz pouquíssimo tempo que a eletricidade chegou a todos os rincões brasileiros.

P. - O sr. também defendeu a adoção de um modelo similar ao software livre para a distribuição da música.
Como é a situação agora com a consolidação do streaming?
GG - Tem o híbrido cada vez mais nítido entre o que é pago e o que foi facilitado gratuitamente, um conjunto enorme de aplicativos, jogos, serviços para tudo gratuitos. Ao mesmo tempo tem os softwares proprietários, que são explorados pelas empresas, motores industriais que produzem riqueza, renda. Está tudo misturado.
Na música, tem um crescimento exponencial do consumo, ou um aumento potencialmente exponencial, através dessas plataformas. Inúmeras delas. São ao menos 60 grandes no mundo inteiro.
Ao mesmo tempo, os artistas não estão sendo remunerados na medida de seus direitos e das suas necessidades. Ainda está muito difícil migrar do mundo analógico para o digital. É toda uma questão nova, uma briga danada das sociedades de direito autoral com essas companhias que detêm as plataformas para que se aumente o percentual de distribuição aos artistas, para os responsáveis diretos pela produção dos conteúdos.

P. - Outros desafios além da remuneração?
GG - Outro é propriamente o acesso à tecnologia, distribuição da riqueza tecnológica para que todos possam ter acesso a um ferramental todo que está disponível em grandes centros, lugares maiores, nas grandes capitais. Há problemas materiais e conceituais.

P. - Ao mesmo tempo, vemos pessoas que antes não teriam acesso a recursos tecnológicos fazendo sucesso muito grande e repentinamente, não?
GG - Houve um barateamento da tecnologia que proporcionou isso. Um músico como eu, há 50 anos, precisaria de alguém que tivesse uma máquina, um estúdio, um aparato técnico específico, que fosse capaz de ceder ele, de trazer você para próximo dele, fazer as gravações, distribuir o produto em rádio e em lojas de discos.
Toda a criação de um mercado que me remunerava na minha criação dependia de uma grande companhia internacional, um técnico ou um conjunto de técnicos que estivessem dispostos a me dar acesso.
Hoje em dia, qualquer pessoa tem um estúdio dentro de casa. Qualquer menino, meus netos de 10, 11 anos fazem tudo hoje.

P. - Isso leva a maior diversidade na produção? Gosta desse cenário?
GG - Não adianta eu gostar ou não, é um imperativo tecnológico. É assim. Quem não vem no cordel da banda larga vai viver sem saber que o mundo é seu.
Claro que tem os gostos, as afinidades maiores que se tem com isso ou aquilo, da preferência do desenvolvimento da música em um campo. Mas é um imperativo tecnológico.

P. - Você deve trabalhar o tema da Festa Junina em junho. Como fica a música mais tradicional, regional? Ela segue com espaço?
GG - Ela entra na disputa e participa. A quantidade de meninos autores, cantores e instrumentistas nordestinos, acordeonistas que têm me solicitado para participar das lives deles, dos lançamentos deles, é enorme. Em Pernambuco, na Bahia, no Ceará, em todo lugar.

P. - O sr. está preso na rede, como diz a letra de "Pela Internet 2"?
GG - Esse tipo de aprisionamento é compulsório. Não tem quem tenha um celular, um computador, um gadget qualquer que não esteja compulsoriamente preso a essa rede.

P. - Sente saudades de não estar?
GG - Alguma. Mas o antídoto para isso é a moderação no uso. Tenho muitos colegas que não têm celular até hoje. Eles se recusaram a ter. Estão até agora resistentes. Abriram mão dessa possibilidade de expansão do seu potencial. Querem manter uma potência mais modesta. Não querem essa navegação solta, esse lançar-se ao infomar. Eles querem ficar na praia, não querem essa navegação toda que o ciberespaço impõe.
Mas é uma escolha que cada um faz. Os meninos, meus filhos e netos, não podem fazer. São criados, educados e alfabetizados nessas novas linguagens, nesse expansionismo.

P. - As lives vão continuar após a pandemia?
GG - Acredito que vão continuar, se acoplar aos processos tradicionais. No teatro, por exemplo, que teve de se impor uma atitude revolucionária para usar os espaços restritos, fazer suas peças e comunicações a partir de casa, isso vai se acoplar quando eles voltarem a ter público.
Você terá um híbrido dessas novas formas com as velhas formas. Mas é muito prematura a avaliação agora do que realmente pode acontecer.
Alguém como [o ator] Ary Fontoura, por exemplo, um ator tradicional que viveu no teatro e na televisão a vida inteira, passou este ano em casa inventando mil e umas loucuras e maravilhas para sobreviver e se comunicar, para expandir sua dimensão cognitiva.
Ele está aprendendo muita coisa, novas linguagens, novas maneiras de usar o corpo, está cozinhando sua comida, fazendo seu pão dentro de casa, sozinho. O dia em que ele voltar ao teatro, tudo isso que ele acumulou vai estar ali com ele, vai interferir no trabalho dele. Ele não pode voltar de maneira alguma à antiga forma de atuar. Não existirá isso mais para ele. será um novo velho, um velho renovado.

P. - O sr. aprendeu neste período?
GG - Não sei. Não quero nem fazer essa medida, ter essa métrica para saber quanto minha garrafa encheu (risos).

GILBERTO GIL, 78
Cantor, compositor e guitarrista. Criador do tropicalismo ao lado de Caetano Veloso, incorporou o reggae, o rock e o funk aos ritmos do Nordeste. Lançou 57 álbuns e tem oito prêmios Grammy. Foi vereador de Salvador (1989 a 1993) e ministro da Cultura (2003 a 2008) no governo Lula.

Fonte: Folha Press

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