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O Srº Corona e seus Questionamentos - Por João Silvério Trevisan

Pela janela, vejo do outro lado da rua o sr. Corona refestelado em seu trono virótico. Coloco meu escudo, quer dizer, minha máscara-cuecão. Percebo o sr. Corona cheio de si, quando me fala em tom sarcástico: “Vocês reclamam de mim, mas não falam do que estão aprendendo comigo. Gente ingrata!”.

Como já o conheço após meses de convívio, replico como uma vilã de novela: “Ah, que interessante, um mensageiro da morte ensinando os vivos.” O sr. Corona fica sério: “Outro dia vi esta rua vazia. Os motoboys não vieram trabalhar em frente ao restaurante, onde se amontoam dia e noite. Estão fazendo manifestações, sabia?”

Eu sabia, mas fiz de conta que não: “É mesmo? Eles se manifestam por quê?” O sr. Corona ri em cascata e crava: “Os motoboys vão fazer greve, meu bem. E sem eles vocês vão passar fome na quarentena.” Só pra contrariar, ostento falsa naturalidade: “Eu nunca pedi comida por aplicativo. Vão fazer greve por que?”

O sr. Corona me passa a perna: “Não se finja de desentendido, meu bem. Você está cansado de saber: é a mesma exploração dos mais pobres, como sempre. Mas graças a mim agora vocês estão encarando a uberização da pobreza. A quarentena de vocês foi salva pela atividade dos motoboys. Sem eles, muita gente de bem passaria fome, concorda?”

Deixo de lado o papel de vilã, quando o sr. Corona me olha fulminante: “Vocês deviam se envergonhar. Os caras passam fome pra levar comida a quem pode pagar. Mas quase todo o dinheiro fica com as empresas que os usam sem direitos.”

Com meu rosto escondido pela máscara-cuecão, o sr. Corona não viu que fiquei vermelho. Minha gastrite se manifesta, quando ele crava, outra vez: “Foi preciso a ameaça de vocês passarem fome para se dar conta de que a fome de tanta gente sustenta vocês.”

 Sinto nova pontada no estômago, e confesso meu espanto: “Tem gente se perguntando se a extinção da humanidade não é o único remédio para melhorar o mundo...” O sr. Corona se agita: “Que solução besta é essa? O genocídio em massa aconteceu tantas vezes antes e continua agora. Veja os assassinatos dos pretos.”

Minha perplexidade é mais antiga do que eu, e assim a manifesto: “Não sei o que vamos fazer com tanta desgraça.” O sr. Corona não titubeia: “Façam as perguntas certas, antes de dar respostas apressadas. Perguntem de novo e de novo o que está errado. E por que deu errado. Chega de respostas simplistas. A Bolsa Família é só um quebra galho, enquanto os banqueiros lucram bilhões a cada ano. E fascistas ainda acham que a solução é matar os pobres? Usam a mim, um vírus sem culpa, para impulsionar um processo eugenista. Dão esmola aos pobres e os obrigam a se contaminar nas filas de bancos, depois os empurram para as filas dos hospitais lotados. Fazem fila até nos cemitérios.”

 Apesar da dor na gastrite, insisto: “Com tanta ganância, como vamos resolver a pobreza no mundo?” Ele não titubeia: “Perguntem, perguntem. Vocês humanos já deviam saber. Os motoboys de aplicativos são um repeteco da exploração da mão de obra na revolução industrial do século 19. É obsceno que o problema continue ainda hoje!”.

Ah, sinto a História humana ecoando na minha gastrite, mais ainda quando o sr. Corona pontifica: “Meu papel pandêmico é obrigar vocês a pensar. Um que morre, morrem todos. O inferno está cheio de boas intenções!” Missão cumprida, o sr. Corona se levanta do trono e ensaia uma dancinha, enquanto sai cantarolando a paródia de um sucesso da Mina nos anos 70: “Perguntas, perguntas, perguntas...” Olho a cena e penso: esse sr. Corona provoca gastrites na alma da gente.

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