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Zika vírus e microcefalia: mistério, cautela ou histeria?

Um estudo publicado na Inglaterra aponta que o risco de uma mulher grávida ter um filho com microcefalia é de 1%. A pesquisa é tema de artigo do neurologista Marcelo Adriano Vieira, do Instituto de Doenças Tropicais Natan Portella, em Teresina (PI), que aborda o mistério em relação a doença, a histeria provocada pelo problema no Brasil e a cautela necessária no momento. 

Zika vírus e microcefalia: mistério, cautela ou histeria?

A pesquisa “Association betweenZikavirus andmicrocephalyin French Polynesia, 2013-15: a retrospective study” estimou em 1% o risco de uma gestante infectada pelo vírus Zika gerar uma criança com microcefalia.  O estudo foi publicado recentemente pela revista médica inglesa “Lancet” e, para alguns, deveria arrefecer o temor associado à provável pandemia. Entretanto, os resultados da pesquisa não se constituem elementos indicativos de redução do nível de alerta das autoridades de saúde (nacionais e internacionais) frente à problemática da Zika / microcefalia.

A população estudada tinha identidade genética distinta da brasileira, encontrava-se exposta a fatores ambientais e nutricionais diversos dos nossos e estava sujeita a agentes infecciosos (sequencialmente ou simultaneamente) diferentes daqueles presentes no Brasil. Neste ínterim, pode haver disparidade relevante nos efeitos do vírus Zika sobre as gestantes brasileiras (e sobre seus fetos) por conta de particularidades de sua resposta imunológica e de sua susceptibilidade biológica, a ponto de limitar extrapolações e inferências a partir do estudo em questão. Nada impede, portanto, que o risco de uma grávida brasileira gerar uma criança com microcefalia ao ser exposta ao vírus Zika no país seja bem maior do que o percentual verificado na amostra do estudo.

A (triste...) experiência brasileira recente aponta que microcefalia não é a única consequência indesejada da infecção materna pelo vírus Zika. Abortamento, morte fetal intrauterina, artrogripose múltipla, cegueira e surdez são elencadas como possíveis componentes da “Síndrome da Zika Congênita”. Tais repercussões de curto / médio prazo não foram abordadas na pesquisa – sem falar em alterações funcionais (não anatômicas) que poderão ser percebidas somente quando as crianças aparentemente “normais” ao nascer atingirem maior idade, como: epilepsia secundária e distúrbios de comportamento, atenção e aprendizagem.  

Ao magnificar o grau de “emergência” de um surto, epidemia ou pandemia, não é apenas o risco de complicações (morbidade) e de morte (mortalidade) que deve levado em consideração. Estas estimativas são mais importantes ao se considerar a dinâmica saúde/doença de um único indivíduo, já afetado pela doença (probabilidade de gerar sequelas ou morte). As repercussões populacionais de uma doença são mais bem dimensionadas através de outros parâmetros, como: taxa de ataque, densidade e competência vetoriais, potencial de disseminação, magnitude, severidade, transcendência e vulnerabilidade populacional – fatores que não foram objetos da pesquisa publicada. Uma pesquisa realizada anteriormente na Polinésia Francesa mostrou que até 70% da população local foi infectada pelo vírus Zika. Portanto, comparações com as consequências da infecção materna por Rubéola, Toxoplasmose, Citomegalovírus ou vírus Herpes simples não são alentadoras. Até 70% mulheres infectadas por Rubéola no primeiro trimestre da gravidez geram bebês com problemas neurológicos. Entretanto, a “febre Zika” tem potencial de disseminação infinitamente maior do que o das outras infecções historicamente associadas às más-formações congênitas. E mais: presume-se que mesmo a infecção inaparente por Zika possa trazer repercussões indesejadas tardias (como a Síndrome de Guillain-Barré) ou inicialmente “ocultas” (como a microcefalia intraútero).

Ainda que extrapolássemos o “teoricamente” baixo risco estimado no estudo (1%) para as gestantes brasileiras infectadas, ainda não haveria motivo para tranquilização. Supondo que 70% da população brasileira tenha contato com o vírus (como ocorreu na Polinésia Francesa), mesmo que grande parte com infecção inaparente, esperar-se-ia que 70% de nossas gestantes o fossem. Portanto, teríamos pelo menos 0,7% dos nascidos nos meses subsequentes à epidemia afetados por microcefalia. Tomando por base os dados de nascimentos / ano do IBGE, vislumbrar-se-ia o nascimento de aproximadamente 21.000 crianças com a má-formação; a média histórica brasileira era de “apenas” 170 casos de microcefalia por ano até 2014...  Tal cenário se colocaria, sim, como estado de calamidade e marcaria a geração atual para todo o sempre, com impacto bem maior do que o observado, décadas atrás, com a talidomida e, recentemente, com a transmissão vertical do HIV.

Talvez não seja 1%. Ainda que seja, não seria pouco. A título de comparação, “somente” 1% das crianças infectadas com o vírus da Poliomielite desenvolvem Paralisia Infantil. Diante dos fatores elencados acima (potencial de disseminação, magnitude, severidade, transcendência e vulnerabilidade populacional), alguém sugeriria “afrouxar” a cobertura vacinal específica da doença, ou ao menos consideraria a vigilância da OMS em mantê-la erradicada em vários países como “exagero”? Nos EUA, somente um em cada 150 indivíduos infectados pelo “Vírus do Oeste do Nilo” (pertencente à mesma família do Zika) manifestam comprometimento neurológico – estimativa suficiente para que autoridades de saúde daquele país mantivessem sob alerta sua possibilidade de disseminação entre o final dos anos noventa e o início do novo século.

Cautela, ciência, pesquisa e responsabilidade são os apelos do momento. Consequentemente, estudos semelhantes e realizados na população brasileira serão muito bem vindos. 

Marcelo Adriano Vieira
Neurologista – 
Instituto de Doenças Tropicais Natan Portella 

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