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O SR. CORONA E OS TRABALHOS MENORES

Por João Silvério Trevisan

Estou preparando meu arroz integral e não consigo definir a quantia de curry nem de sal nem de água. Me sinto todo descadeirado, um trapo mesmo, depois de passar o dia de ontem fazendo limpeza na casa. Não sei o que foi pior, se o banheiro ou a cozinha. A sala decidi só limpar quando der. Então sinto cheiro de queimado, e a fumaça se espraia. Pelo interfone, pergunto ao porteiro. Um vizinho esqueceu a frigideira no fogo aceso.

O sr. Corona vem espreitar, com aquele ar maroto de quem sabe o suficiente, e não precisa se descabelar de perplexidade – como eu. Corro vestir minha máscara-cuecão. O sr. Corona se aproxima: “E aí, já queimou quantas panelas?” Mesmo mal humorado, me esforço pra não praguejar. Ponho o arroz pra cozinhar em fogo brando.

O sr. Corona comenta: “Nesta rua já vi dois casos graves de incêndio e intoxicação. Num, o cara deixou um litro de álcool perto do fogão aceso. No outro, duas crianças acabaram engolindo desinfetante.” É, eu imagino. Meu vizinho acha que tudo não passa de pânico.

Começo a preparar a carne. As facas perderam o corte e, mesmo usando o amolador, não funcionam. Praguejo discretamente, mas percebo que o sr. Corona ri, quase deliciado: “Seria mais fácil ser vegetariano.” Me sinto pego em flagrante, então extravaso minha culpa: “Já fui, por uns bons anos. Era muito complicado. Tive anemia.”

O sr. Corona nota minha falta de sinceridade. Não preciso lhe explicar que gosto de carne. Mas ainda tento me desculpar: “É, aprendi muito nos meus tempos de vegetariano, tal como combinar proteínas, carboidratos e não ingerir líquido durante a refeição. Até aprendi a cozinhar umas coisas.” O sr. Corona comenta, zombeteiro: “Ah, isso se vê.”

Aumento o som do rádio, mas não consigo aplacar minha frustração. Tempero a carne e refogo, antes de fechar a panela de pressão. Não sei se coloquei os temperos adequados nem a quantia de água suficiente. Não sei se ponho no fogo médio ou alto. Aliás, não sei quanto tempo leva pra cozinhar.

Agora é o alface, que lavo e deixo de molho, para higienizar. Gasto meia hora nisso. O sr. Corona continua olhando. Parece inspirado, hoje. Ou, quem sabe, entediado com a quarentena que impede seu serviço letal.

De repente, vejo o chão da área de serviço. Inundado. Corro. Um pano que esqueci dentro do tanque entupiu o escoamento da água despejada pela máquina de lavar. Quando puxo a água para o banheiro sinto cheiro de cocô. Ah, não. Lá está um montão que a Nina fez não sei quando. A máquina de lavar se agita tanto que parece prestes a levantar voo. Esqueci de chamar o técnico. Melhor desligar. Limpo o cocô. Passo desinfetante no banheiro.

Então lembro e saio correndo para ver o arroz. Desligo. Quando experimento, está duro. Putz, esqueci de cozinhar o feijão. Vou substituir por batata doce. Descasco, corto, ponho para cozinhar com folhas de louro.

 O sr. Corona, que não perde nada, observa: “É bem difícil ficar sem empregada, né?” Olho exausto, com energia só suficiente para corroborar: “Não vejo a hora que ela volte.” O sr. Corona ri, cínico: “E ainda chamam isso de trabalhos menores...” Antes de se retirar, ele pergunta a esmo: “Entendeu o que eu digo?”

É quando sinto um cheiro familiar. Saio correndo acudir, mas já é tarde. Não haverá carne no almoço, só carvão. Vou terminar de cozinhar o arroz, para comer com gersal, batata e salada temperada com azeite e shoyu light. Renasce um vegetariano de quarentena.

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