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Casas incendiadas, uso de arma e ameaças: moradores relatam ações de suposta milícia em Barra Grande

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Por Roberto Araujo

É no mesmo local de cenário paradisíaco de belas praias que moradores têm denunciado que estão sofrendo represálias e perseguições por conta do local de onde tiram o sustento e onde vivem. Na localidade Nova Barra Grande, que fica a poucos quilômetros do famoso vilarejo, na zona rural do município de Cajueiro da Praia, não é raro ouvir relatos de moradores que foram vítimas de ameaças, tiveram perdas na sua produção e até suas casas destruídas. As denúncias apontam que grileiros de terras estariam por trás das ações para retirarem os moradores do local.

De acordo com os moradores, são cerca de 40 famílias que vivem na região. Atuações de agentes públicos estariam por trás de ameaças e coações às pessoas com o objetivo de retirá-las das suas terras sob o pretexto de que elas não são as detentoras daquele terreno: toda a área é pertencente à União, cuja responsabilidade é da Superintendência do Patrimônio da União (SPU).

O Antônio Carlos conta que, depois que deixou de trabalhar como pedreiro, passou a viver da pesca e da agricultura, com que já havia trabalhado quando mais novo. Ele construiu uma pequena casa sem cômodos em uma área rural próxima a um lago, área essa pertencente à União, onde passou a plantar e criar alguns animais, há pelo menos sete anos. No entanto, no final do ano passado, conta que passou a receber “avisos” de pessoas que se apresentavam como policiais dizendo que ele não deveria estar ali. Ele chegou a ter a pequena casa onde morava incendiada no momento em que ele tinha saído para pescar.

“Eu estava aqui com um amigo meu fazendo cofo quando vieram um bocado de carro, um com fuzil, tinha roupa do exército, e os outros, me perguntando como foi que eu entrei aqui, ai eu falei: ‘foi um amigo que me apresentou porque eu não tinha onde morar’, ai ele falou: ‘pois você sabia que aqui é de domínio da União?’ Eu disse: ‘sabia, mas eu pensei que tava liberado para a gente’, ai ele disse Seu Antonio, a gente vai respeitar a sua casa, mas eu pensei que ia respeitar também minha cerca, aqui era cheio de planta, já grande, ai eles saíram para cima, quando voltaram, já foi derrubando tudo.  (...) depois eu sai para pescar, quando eu chego, a situação da casa, dessa forma, ainda tinha fumaça”, relatou.

Foto: Roberto Araujo / Cidadeverde.com

Depois de ter a própria casa incendiada, ele contou que passou a ter medo e não volta mais a dormir no local. Ele passou a não mais pescar nos horários habituais a apenas volta para o local para vistoriar as suas plantações e criações de galinha que ainda permanece na área.

“Eu tenho medo ainda porque aqui fica distante das pessoas, e ai eu fico aqui até tarde, mas depois eu vou dormi para acolá, eu dormia era aqui, agora não fico mais”, disse.

Ordem de despejo

Além das ameaças de que supostos agentes policiais estariam fazendo de forma indevida, operações efetivas da Polícia Federal destruíram casas e cercas dos moradores do local, segundo a instituição, a partir de um cumprimento de ordem de despejo. Os moradores apontam que pelo menos 40 casas foram derrubadas por tratores em uma operação em novembro de 2023.

Foto: Polícia Federal

O José Ribamar mora em um pequeno casebre com a esposa e os quatro filhos pequenos. Ele relata que os agentes da Polícia Federal chegaram com os tratores derrubando algumas casas e determinara que saíssem do local porque se tratava de uma “invasão à propriedade alheia”, conforme relato.

"Eles chegaram dizendo: 'aqui tudo tem dono, vocês tão invadindo a propriedade alheia', ai eu digo, 'mas como, se desde quando eu nasci e me criei eu moro aqui e nunca apareceu dono, e agora tem dono?' E ele disse que agora tem dono, ai o pessoal da Federal que veio aqui, eu fui olhar o plantio do meu primo, eles colocaram arma em mim e me mandarm vir embora, eu vim (...) Eles disseram que ali tudo era, eles disseram o nome do pessoal, que não era para ninguém mais mexer ali que tudo tinha dono. E eu perguntei, 'mas como que tem dono se eu nasci e me criei aqui', aqui plantei a vida toda, paguei renda dessas terras aqui, mas sem nunca ter dono, mas pagava a renda porque dizia que tinha dono para o plantio. E a terra sendo da gente, porque a terra é nossa, não é do povo rico que vem de fora dizer que é dono", relatou.

O agricultor, que planta milho, feijão, macaxeira, coco, caju, dentre outros, relata que a situação com a presença da Polícia Federal foi a mais recente e mais deixou destruição na comunidade, mas que outras ameaças já vinham acontecendo.

Foto: Roberto Araujo / Cidadeverde.com

ONG acompanha a situação e diz que moradores vivem com medo

Quem tem acompanhado a situação dos agricultores e a Comissão Ilha Ativa (CIA), uma ONG que tem atuação em trabalhos socioambientais relativos à conservação da biodiversidade marinha, mas também auxilia com a conscientização sobre os modos de vida das comunidades tradicionais. A presidente da CIA, Liliane, detalha que os pescadores têm mudado alguns hábitos, como o horário da pesca, por conta do medo.

“Eles se intitulam policiais, chegam na comunidade armados, dizendo que representam a organização policial, como polícia civil, polícia militar, apresentam documento dizendo que são da polícia, e que vem fazendo esse tipo de violação, de desrespeito mesmo, amedrontando o povo, colocam arma na cabeça das pessoas. Os pescadores hoje têm medo de sair de casa para ir pescar, tem que estar esperando o dia clarear para fazer a sua atividade, antes eles esperavam o horário da maré, eles têm que sair com a certeza de que não vão ser reprimidos no momento do seu trajeto na hora de pescar. E tudo isso é feito por pessoas que se dizem ser policiais, as vezes não instituídos de uma farda, mas chegam lá, se autodeclarando policiais, ameaçando os pescadores, dizem que se eles não saírem, vão ser presos de novo", denuncia.

Foto: Roberto Araujo / Cidadeverde.com

De acordo com o Demétrius Oliveira da Silva, presidente da Associação Comunitária do Projeto Assentamento Nova Barra Grande, a localidade historicamente é ocupada por agricultores e pescadores, mas que com a expansão do turismo, quem estaria por trás das ameaças e da tentativa de expulsão dos moradores seriam empreendimentos em busca de território para expansão.

“De um tempo para cá, por conta da crescente de turismo de massa de forma desordenada, nós temos sofrido muito na praia com as derrubadas de pesqueiras, com nossos direitos sendo retirados e, não bastando isso, eles viram nossa área de plantação, nossas roças e começaram a atacar derrubando nossas cercas, derrubando casas de moradores, dizendo que eram donos, que tinham comprado e nunca apresentaram documento nenhum que eles realmente fossem donos. A comunidade nunca teve conhecimento que essa terra tinha um dono, a não ser a União, sempre as pessoas mais velhas falavam que era da Uniao e a comunidade sempre plantou nessas terras, milho, feijão, mandioca, macaxeira para sustento mesmo”, citou.

Defensoria Pública da União pede ação do Estado

O defensor público da União, José Rômulo Plácido Sales formalizou, no dia 16 de abril uma denúncia de que agentes do Estado, principalmente policiais, estariam cometendo o crime de formação de milícias para dar suporte à grilagem de terras no litoral piauiense. O defensor apresentou a denúncia ao secretário de Segurança Pública do Piauí (SSP-PI), Chico Lucas, que disse que determinou a abertura da investigação pela Corregedoria da Polícia Militar e pelo Departamento de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) da Polícia Civil.

Em entrevista à TV Cidade Verde no dia 17 de abril, o defensor disse que interessados na expansão imobiliária e de empreendimentos do setor de turismo estariam plantando denúncias de crime de pequeno grau para que as forças policiais se impusessem contra os moradores nativos. "Eles usam da tática de denunciar qualquer ocupação de terras que essas pessoas façam, qualquer crime ambiental, por menor que seja, eles denunciam, mobilizam, jogam as forças públicas contra essas pessoas", descreveu.

SPU: há "irregularidades" relacionadas à ocupação e "uso indevido da área"

Em nota ao Cidadeverde.com, a Superintendência do Patrimônio da União (SPU) disse que realizou uma fiscalização no local e identificou "irregularidades" e "uso indevido da área". Disse, ainda, que a área faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta do Parnaíba e que está realizando uma apuração que irá encaminhar ao Ministério Público Federal (MPF): (Veja resposta na íntegra a seguir) 

Nota - SPU

A Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, por meio da Superintendência do Estado Piauí, esclarece que realizou uma fiscalização no local, em resposta à solicitação do Ministério Público Federal (MPF). Durante a fiscalização, a SPU-PI observou indícios de irregularidades relacionadas à ocupação e uso indevido da área, que está situada dentro da Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba. 

A apuração está em curso e o relatório final será encaminhado ao MPF.

MPF: inquérito apura retirada de agricultores que ocupam a região há 60 anos

Já o Ministério Público Federal (MPF) disse que foi instaurado um inquérito civil no mês de abril para apurar a retirada de agricultores da região, na área que é de titularidade da União, que os moradores ocupam a região há 60 anos, e que o inquérito ainda está em trâmito, não resultando, até o momento, em uma proposta de ação civil pública. (Veja a nota na íntegra a seguir)

O Ministério Público Federal instaurou o Inquérito Civil nº 1.27.003.000076/2023-19 para apurar a retirada de agricultores da localidade Nova Barra Grande, em Cajueiro da Praia, área de titularidade da União potencialmente ocupada pelos agricultores há 60 anos.

O Inquérito Civil ainda está em trâmite, não sendo ainda proposta ação civil pública com tal objeto.

A Polícia Federal (PF) foi procurada pelo Cidadeverde.com, mas, até o fechamento da reportagem, não houve retorno. O espaço segue aberto para os esclarecimentos.

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