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ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL (ANPP) E O REQUISITO DA CONFISSÃO. INCONSTITUCIONALIDADE? BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O TEMA.

 

JOSINO RIBEIRO NETO

ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL (ANPP) E O REQUISITO DA CONFISSÃO. INCONSTITUCIONALIDADE? BREVES COMENTÁRIOS SOBRE O TEMA.

 

                        O ordenamento jurídico processual penal recebeu importante inovação a partir da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19 que, dentre as inúmeras novidades, criou o mecanismo despenalizador denominado de Acordo de Não-Persecução Penal, assim dispondo no seu art. 28-A, in verbis:

“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:”

 

                        O referido mecanismo tem como bases de aplicação requisitos semelhantes a outros institutos despenalizadores da sistemática processual penal, como é o caso da suspensão condicional do processo e da transação penal.

 

                        No entanto, dentre algumas diferenciações quanto aos requisitos necessários para a sua aplicação, chama-se atenção ao fato de exigir-se do Investigado a confissão circunstancial e formal da prática da infração penal, de modo a possibilitar a propositura do acordo de não-persecução penal pelo Ministério Público.

 

                        A exigência em questão tem trazido intensa discussão de juristas sobre a matéria, posto que confronta com princípios de natureza constitucional, como, por exemplo, o direito ao silêncio e a presunção de inocência.

 

                        O dispositivo que trata da matéria é claro ao apontar a necessidade de confissão formal e circunstancial da prática do ilícito apurado para que seja possível a realização do acordo. Em outras palavras, o instituto exige que o acusado abra mão do seu direito a não produção de provas contra si mesmo (nemo tenetur se detergere).

 

                        É importante relembrar que a atual Constituição da República Federativa do Brasil é clara ao garantir ao indivíduo que ocupe o polo passivo de investigação criminal ou ação penal o direito ao silêncio (art. 5º, LXIII, CF/1988):

 

“LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”

 

                        Outros regramentos legais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (Decreto nº 678/1982, art. 8.2, "g"), expressamente garantem o direito a não autoincriminação à pessoa acusada, senão vejamos:

 

“2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

 

[...]

 

g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”

 

                        É nítido, portanto, que o condicionamento da confissão para celebração de ANPP confronta diretamente com regramentos basilares do nosso ordenamento jurídico.

 

                        Ora, condicionar o acordo ao indivíduo confessar a prática de ilícito penal sem que tenha sido submetido a uma instrução criminal sob o crivo do contraditório e da ampla defesa é sem dúvidas uma exigência que mitiga direitos resguardados constitucionalmente.

 

                        Não há que se perder de vista que a Carta Magna adotou como um dos pilares do direito penal o princípio da presunção de inocência, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII, CF/1988).

                        A presunção de inocência, adotada pela Constituição, impede de forma clara a aplicação do requisito de confissão exigido no Acordo de não-Persecução Penal, posto que trata de verdadeira inversão da lógica processual penal com a antecipação de culpa.

 

                        Ademais, pelo que se observa da redação do art. 28-A do CP (interpretação dada ao menos quando entrou em vigor), a confissão exigida no ANPP exige que o indivíduo confesse prática criminosa dando detalhes e circunstâncias do fato.

 

                        Quer dizer, o indivíduo, além de confessar a prática do ilícito, poderá indicar circunstâncias que futuramente, caso não seja possível o cumprimento do acordo, irão lhe colocar em posição de desigualdade dentro do processo penal, tendo em vista que já detalhou toda sua conduta.

 

                        Ademais, é certo que a confissão exigida também repercutirá na vida social do indivíduo, eis que muito embora não tenha que efetivamente cumprir pena restritiva de liberdade, carregará consigo o estigma de criminoso mesmo não tendo sido submetido ao crivo do contraditório e da ampla defesa em ação penal.

 

                        Portanto, não restam dúvidas que o requisito de confissão, inserido dentro das exigências para formulação do Acordo de Não-Persecução Penal, viola diretamente o texto constitucional, posto que confronta com o direito ao silêncio e à presunção de inocência.

 

                        Por fim, temos por destacar que a confissão em ANPP, ao menos em sede de jurisprudência, tem tido seus efeitos mitigados.

 

                        O Colendo Superior Tribunal de Justiça já tem adotado o entendimento de que a confissão em sede de ANPP não poderá ter valor probatório, ou seja, aquela confissão não poderá ser aventada em sede de instrução probatória criminal como sendo elemento de prova (STJ, Habeas Corpus nº 756.907/SP, relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, DJ 13/9/2022).

 

                        O acertado entendimento tem por base o que estabelece o art. 155 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:

 

"O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas".

        

                        Ou seja, a prolatação de sentença condenatória deve ser embasada em provas produzidas após a instauração da Ação Penal, de modo que os elementos de informação produzidos em sede pré-processual não podem ser os fundamentos basilares de uma condenação.

                        Para melhor compreensão, transcrevemos abaixo trecho do brilhante acórdão proferido pelo Ministro Rogério Schietti Cruz nos autos do Habeas Corpus nº Habeas Corpus nº 756.907/SP, julgado em 13/09/2022, vejamos:

 

“Ainda assim, por ser uma prova extrajudicial, seria retratável em juízo e não tem standard probatório para, exclusivamente, levar à condenação. Seja qual for a sua clareza, deve ser confrontada com outros elementos que possam confirmá-la ou contraditá-la, durante a instrução criminal.

 

Se o celebrante do ANPP não figura no pólo passivo da ação penal e a confissão formal não pode ser utilizada contra ele (na seara criminal) enquanto não descumprir o ato negocial, com muito mais razão essa prova extrajudicial carece de aptidão probatória para, per se, subsidiar a condenação de coautor do mesmo fato delituoso, atingido pelas declarações.

 

O implicado poderá ser demandado a confirmar o conteúdo de sua confissão no curso de ação penal ajuizada apenas contra o réu, mas será ouvido em Juízo. Deve-se garantir que a formação da convicção judicial observe os ditames do art. 155 do CPP.

 

A verdade judicial traduzida na sentença precisa ser uma verdade processual. Para que declaração do celebrante do ANPP possa respaldar o decreto condenatório é imprescindível sua reprodução em juízo, durante a ação penal, e a constatação de sua coerência com provas judicializadas, submetidas ao contraditório, de forma a conferir ao réu o direito fundamental de efetiva participação na formação da decisão judicial, em dualidade com o Ministério Público.

                                                       

Deixou de ser observada a garantia do ar. 5º, LV, da Constituição Federal. A defesa não pôde refutar a prova produzida contra o acusado durante a confissão extrajudicial que antecedeu o ANPP, não reproduzida ao longo da instrução criminal. O Juiz deixou de ser assegurar à parte a paridade de tratamento em relação ao Ministério Público. No mais, a sentença faz referência a outros elementos informativos (depoimentos prestados ao Promotor de Justiça e no âmbito de inquérito policial, durante as investigações) que também não possuem valor para formar a convicção judicial. Demonstrada a ofensa ao art. 155 do CPP, impõe-se a absolvição do paciente nos termos do art. 386, VII, do CPP.

 

                        Portanto, a conclusão a que se chega é que: 1) a exigência da confissão circunstancial e formal da prática da infração penal para a celebração de Acordo de Não-Persecução Penal é requisito inconstitucional, pois confronta com o direito ao silêncio (nemo tenetur se detergere), previsto no art. 5º, LXIII, CF/1988 e com o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, CF/1988; 2) ainda que seja mantida a confissão como requisito, posto que ainda não há uma definição jurisprudencial uníssona, a mesma não poderá alçar a categoria de prova, posto que não foi submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa.

 A matéria é de autoria do DR . CARLOS CRIZAN SANTOS DA CUNHA,  jovem advogado que integra o escritório do titular da coluna, penalista de reconhecido talento, induvidosamente, um dos profissionais mais competentes no trato da matéria.

 

 

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