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Herança Digital: conflitos e perspectivas

Por Gabriel Furtado e Lara Kronenberger

O Direito das Sucessões consiste no conjunto de normas que disciplinam a herança, entendida como o conglomerado de bens, direitos e obrigações que integram o patrimônio de alguém, depois de sua morte, e que se transfere aos herdeiros em virtude de lei ou testamento. Tal agrupamento normativo encontra fundamento na própria Constituição da República ao enumerar, em seu artigo 5º, inciso XXX, o direito de herança como parte dos direitos fundamentais.[i]

Entre os seus princípios norteadores, destacam-se o respeito à vontade do finado, respaldado na autonomia da vontade, e o princípio da Saisine, exarado no artigo 1.784 do Código Civil, o qual determina que, no momento da morte (abertura da sucessão), é imediata a transferência da herança aos herdeiros legítimos (descendentes, ascendentes, cônjuge/companheiro, colaterais) e testamentários, respeitando-se a premissa de que inexiste bem sem o respectivo titular.[ii]

Quanto aos bens que integram o patrimônio a ser transferido, são conceituados como “coisas que proporcionam ao homem alguma utilidade, sendo suscetível de apropriação”.[iii] Nesse cenário, a mudança nas relações sociais ocasionada pelo avanço da tecnologia fez surgir uma nova categoria de “utilidade” para além do ambiente tangível e analógico tradicionalmente regulamentado pela legislação brasileira: os bens digitais. 

O objeto desse tipo de legado são bens imateriais, incorpóreos e intangíveis armazenados em dispositivos telemáticos ou em serviços de nuvem, abarcando fotos, músicas, vídeos, redes sociais, sítios eletrônicos, contas de streaming, documentos e dados em geral.

Surgem, então, novas problemáticas sucessórias, tendo em vista que a transmissibilidade de tais bens como herança é indefinida no ordenamento jurídico brasileiro. Diante disso, mostra-se a necessidade de preencher as lacunas por meio de construções doutrinárias e jurisprudenciais que, em sua maioria, buscam partir da classificação dos bens digitais, que se dividem em patrimoniais e existenciais. 

Os bens digitais patrimoniais representam aqueles que são conversíveis em pecúnia, tais como as milhas, os criptoativos (ativos virtuais protegidos por criptografia, como NFT´s, bitcoin e demais moedas virtuais) e os perfis monetizados (que geram receita) em redes sociais. Em relação a esse tipo de ativo digital, a doutrina especializada converge para a possibilidade de sua transmissão, seja por ato inter vivos ou mortis causa, uma vez que representam objetos de valor econômico que integram esta nova noção de patrimônio. 

No que tange aos bens digitais existenciais, que consistem nas contas estritamente pessoais, sem finalidade lucrativa, a controvérsia se intensifica, uma vez que o direito de herança vai de encontro com a proteção dos direitos de personalidade e da privacidade do usuário. À vista disso, a sua transmissão aos herdeiros ainda é objeto de grande discussão no mundo jurídico.

De um lado, entende-se pela inviabilização da transmissibilidade, tendo como fundamento a proteção da privacidade, intimidade, reputação e a esfera privada do indivíduo. De outro, acredita-se que a solução do conflito esteja na ampliação do conceito de herança já existente no Código Civil, capaz de abarcar a herança digital. Logo, de acordo com a segunda vertente, devem imperar os tradicionais princípios sucessórios da autonomia privada e da Saisine, garantindo a automática transmissão dos bens do falecido aos seus herdeiros legítimos, a menos que, em vida, haja expressa manifestação pessoal em sentido contrário. Portanto, sugere-se que eventual desrespeito, abuso ou exposição que venham a ser praticados pelos herdeiros em propriedade dos bens digitais do de cujus devem ser resolvidos na esfera patrimonial, por meio de sanções indenizatórias.

Apesar da controvérsia doutrinária e da pequena quantidade de casos concretos judicializados atualmente sobre o tema, as pesquisas sobre os julgados em tribunais do país identificam que a própria jurisprudência já aponta algumas lacunas que podem ser sanadas pela reforma do Código Civil, quais sejam: (i) diferenciação entre conteúdo econômico e não econômico da herança digital; (ii) classificação dos bens digitais; e (iii) relação da herança digital com a privacidade do de cujus e de terceiros.

Assim, conclui-se pela necessidade de que a nova legislação alcance o equilíbrio entre a efetivação do direito de herança aos bens digitais e a proteção de seu conteúdo após a transmissão aos herdeiros. Para isso, deve-se concentrar na categorização dos bens digitais, reconhecendo a urgência de uma regulação específica para lidar com os desafios da vida digital após a morte do usuário. Apenas uma abordagem moderna e adaptável às complexidades do contexto brasileiro atual garantirá a efetivação e longevidade dos direitos de herança digital.

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