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Direito e Literatura, um diálogo possível e necessário

Por Luís Guilherme Tavares Santos[i]

 “Para cada constituição existe um épico, para cada decálogo, uma escritura sagrada.”[ii]

 

A escolha por uma carreira por vezes suplanta as vocações e relega ao papel de hobbies atividades consideradas essenciais para nós. Manter sonhos e paixões como parte da trajetória profissional é um desafio a ser exercido reiteradamente, desde os passos iniciais em uma graduação até as árduas escolhas de trabalho. Mas sonhos são o combustível dos dissidentes, e em um mar de tecnicismo no qual um jurista que permanece indiferente ao toque de versos literários se torna a regra, buscar os que permanecem mergulhados nas mais belas prosas e universos de uma fantástica realidade é dever daquele que aspira à verdadeira compreensão do Direito.

Um escrito, ainda que formal, só ganha vida e sentido com a sua percepção como narrativa, ou quando lhe emprestamos significados em sua construção. Todos nós somos escritores, seja quando redigimos peças de reprodução massiva, seja quando rascunhamos mensagens de carinho a pessoas queridas. Portanto, é incompreensível como por vezes nos instam a separar completamente aquilo que se escreve por dever profissional do que se escreve por paixão.

Contrariar esse movimento demanda autenticidade e a certeza de que se lhe pedem que distancie os amores das responsabilidades, que se reforce o compromisso com o que lhe é caro. Nessa jornada de descobrimento e perseverança, é sempre saudável encontrar companheiros, e a descoberta do livro Mil Vezes mais justo trouxe certa luz a muitas obscuridades na falsa divisão entre o jurídico e o literário. A obra, fruto do desejo do professor Kenji Yoshino em oferecer uma compreensão do Direito como um conjunto de histórias, utiliza-se das obras de um dos maiores autores ocidentais para ilustrar conflitos contemporâneos sobre justiça, poder e legalidade.

Explorando a humanidade e atemporalidade em cada uma das principais peças do Bardo, Kenji nos apresenta um mundo restrito aos eternos amantes, um círculo de discussões em que se parte dos livros para os casos, e dos versos para os fatos. Os ensaios da obra aliam o debate entre as peças shakespearianas de com problemas contemporâneos de justiça.  

Somente a título de prévia e exemplo, no capítulo intitulado O Advogado, no qual aborda a peça O Mercador de Veneza.  O foco da peça é direcionado ao modo como o entendimento pode ser manipulado pela oratória, pela argumentação, seja quando Pórcia, elege seu marido, seja quando o absolve no julgamento da ação proposta por Shylock. O julgamento acerca do empréstimo, cuja insolvência seria compensado por uma libra de carne, toma um rumo inesperado graças a retórica de Pórcia, disfarçada de advogado, alega que não estaria incluso o derramamento de sangue, tal como traduziu e adaptou Ariano Suassuna.

Apesar de tomarmos como genial a argumentação utilizada, Kenji Yoshino alerta que por mais que vejamos como belo o dom de usar as palavras e suas várias compreensões para criar uma narrativa, quando isso é feito em um processo, por vezes pode caracterizar uma violação do Estado de Direito, um subterfúgio para burlar as normas postas. Exemplifica essa má utilização da retórica com o episódio envolvendo o ex-Presidente Bill Clinton, e o uso que fez de oratória para se evadir de um caso de violação as regras políticas e jurídicas e demonstra que o que por vezes visto como belo, pode ser ameaça a ordem legal como prezamos.

Já no capítulo O descobridor de fatos, discute-se Otelo, peça que ilustra bem como o modo como se decide desvendar os fatos pode induzir a grotescos erros, seja por influência de outros ou por crer que provas visuais, a despeito de todo nosso conhecimento, se torna irrefutável. Sem revelar mais do que os pontos centrais da trama, a discussão trazida pelo livro se centra em um determinado ato da peça, quando Iago instiga Otelo a crer que Desdêmona o está traindo com Cássio. A essa acusação enviesada pela malícia de Iago, segue-se a apresentação da Prova concreta da traição, o lenço da donzela encontrado nos aposentos de Cássio, lenço este que havia sido o primeiro dos presente de Otelo à amada. O fim da antecipada tragédia e dá com o assassinato de Desdêmona por aquele que lhe prometeu amor eterno.

A trágica morte revela a principal lição do capítulo, já que a suposta traição, fruto apenas da malícia de um conselheiro odioso, demonstra como ao esquecer todos os demais fatos e concentrar-se no lenço apresentado por Iago, Otelo se afastou da racionalidade na descoberta de fatos. O paralelo é realizado com o julgamento do ex-jogador O. J. Simpson, o qual suscitou, além das evidentes discussões quanto ao plano de fundo racial, debate acerca da falibilidade do júri, outrora considera oráculo da justiça, mas que por sua composição humana sujeita-se coletivamente a falhas a que qualquer indivíduo pode incorrer.

Eximindo-se de proferir veredito acerca da inocência ou não do ex-atleta, o livro apenas reforça como apesar de todas provas apresentadas pela promotoria (vestígios de DNA, manchas de sangue do acusado nos locais e corpos das vítimas, as luvas personalizadas encontradas na cena do crime), toda a argumentação foi esquecida no momento em que um dos membros da acusação pediu para que O.J. Simpson provasse a luva e esta não serviu perfeitamente. A inocência, ou melhor a não culpa¸ exarada na decisão do Júri, foi influenciada diretamente pela representação da luva, que faz as vezes do lenço de Desdêmona, provando apenas que “o ser humano tem a tendência a superestimar o concreto em detrimento do abstrato – quando não podemos avaliar o que é importante, tornamos importante o que podemos avaliar”.[iii]

Sem estragar a prazerosa surpresa da leitura desta obra, fica a mensagem sobre possibilidade de união dos desejos jurídicos e literários, é exposto como tudo isso fica restrito a uma “jurisdição da vida”, já que só nesta poderemos discutir as implicações da justiça, da lei e das normas. Ou melhor posto, “quando escapamos da jurisdição da vida, não escapamos apenas do império da lei, mas também do império da justiça. A justiça é a virtude suprema dos vivos. Mas só as pessoas infelizes pensam na justiça em seu leito de morte; as felizes pensam no amor”.[iv]

 


[i] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Membro do escritório Gabriel Furtado Advocacia, atuando nas áreas de Direito Civil, Empresarial e Tributário (OAB/PI nº 20.224). Membro do Grupo de Pesquisa Direito Civil XXI (UFPI) e do Conselho Editorial da Revista Inverbis (UFRN).

[ii] YOSHINO, Kenji. Mil vezes mais justo: o que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça. Editora WMF Martins Fontes, 2014.

[iii] Idem.

[iv] Ibid.

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