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Sobre a herança digital (IV)

Como visto, o problema da herança digital se liga primordialmente a questões cíveis afeitas ao estado das coisas após a morte de uma pessoa. Tangencialmente pode afetar terceiras pessoas outras para além dos seus herdeiros, mas é antes e sobretudo uma questão que se relaciona à personalidade da pessoa falecida. Por isso, o tratamento legal desse problema fica melhor situado no Código Civil que no Marco Civil da Internet. Assim, inicia melhor sua caminhada o Projeto de Lei nº 8562/2017 que o Projeto de Lei nº 7742/2017 – ambos em trâmite na Câmara Federal de Deputados.

Este último, que pretende promover alterações no Marco Civil da Internet, além de tratar a questão da herança digital pela imposição de deveres a terceiros, é confuso. Inicialmente prevê que os provedores de aplicações na internet devem excluir as contas de brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito (art. 10-A, caput). Mas já na sequência diz que essa exclusão depende de requerimento de seus herdeiros, obedecida a linha sucessória (§ 1º). E logo após afirma que esses herdeiros poderão requerer que as contas sejam mantidas (§ 3º). Ou seja: parece não ser claro ao projeto quanto a quais são os efeitos automáticos e imediatos decorrentes do falecimento de pessoa titular de contas virtuais em provedores de aplicações da internet.

Já o primeiro projeto, que pretende incluir disposições legais no Código Civil, além de melhor situado dentro do ordenamento jurídico, aparenta tratar a princípio de forma mais clara e adequada a questão. Isto porque traz maior abrangência, ao incluir dentro da herança digital tanto interesses existenciais quanto patrimoniais, e por possibilitar a constituição de herdeiro testamentário apenas para o trato da herança digital (arts. 1.747-A e 1.747-B). Por fim, abre possibilidades variadas para o destino das contas virtuais da pessoa falecida, não prevendo um efeito jurídico automático mas deixando isso a cargo do herdeiro por elas responsável: transformação em memorial, exclusão de dados pessoais da pessoa falecida ou a remoção da conta (art. 1.747-C).

Um ponto que talvez pudesse ser melhorado seria a previsão de que a herança digital deveria ser transmitida “em bloco” a um único herdeiro, no que tange aos interesses existenciais. Isso para que haja uniformidade no tratamento dado às contas virtuais da pessoa falecida. Já os interesses patrimoniais poderiam ser transmitidos “em fatias” aos herdeiros em geral, conforme as leis sucessórias já vigentes.

Certo é que o Congresso Nacional andaria bem legislasse com celeridade sobre essa questão, a fim de diminuir as dúvidas existentes e o estado de relativa insegurança jurídica quanto à herança digital.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

www.rochafurtado.com.br

Sobre a herança digital (III)

O Projeto de Lei nº 8562/2017, em trâmite na Câmara Federal de Deputados, propõe o acréscimo de um capítulo inteiro ao Código Civil, a ser composto pelos arts. 1.797-A ao 1.797-C, a fim de preceituar expressamente sobre a herança digital. Sua redação seria essa:

 

Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:

I – senhas;

II – redes sociais;

III – contas da Internet;

IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.

Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.

Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:

I - definir o destino das contas do falecido;

a) - transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;

b) - apagar todos os dados do usuário ou;

c) - remover a conta do antigo usuário.

 

A justificativa apresentada na propositura foi a seguinte:

 

Tudo o que é possível guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos, passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada “herança digital”.

O Caderno TEC da Folha de S.Paulo trouxe uma reportagem sobre herança digital a partir de dados de uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres). O estudo mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já? estão incluindo em testamentos quem herdará seu legado virtual, ou seja, vídeos, livros, músicas, fotos e e- mails.

No Brasil, esse conceito de herança digital ainda é pouco difundido. Mas é preciso uma legislação apropriada para que as pessoas ao morrerem possam ter seus direitos resguardados a começar pela simples decisão de a quem deixar a senha de suas contas virtuais e também o seu legado digital.

Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, o presente Projeto de Lei pretende assegurar o direito dos familiares em gerir o legado digital daqueles que já? se foram.

 

Na próxima semana serão trazidas considerações pessoais sobre ambos os Projetos de Lei referidos nesta Coluna nas últimas semanas.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Sobre a herança digital (II)

O Projeto de Lei nº 7742/2017, em trâmite na Câmara Federal de Deputados, propõe o acréscimo do art. 10-A ao Marco Civil da Internet a fim de dispor sobre a destinação das contas virtuais em redes sociais após a morte da pessoa titular. Sua redação seria essa:

 

Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.

§ 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.

§ 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.

§ 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.

 

A justificativa apresentada na propositura foi a seguinte:

 

Com o avanço da internet no dia-a-dia das pessoas, o uso das chamadas redes sociais tem se tornado cada vez mais frequente, havendo notícia de que, em 2015, a aplicação de internet Facebook tenha alcançado a marca de um bilhão de usuários, o que significa dizer que aproximadamente um em cada sete habitantes do mundo tem acesso a essa aplicação de internet.

Deve ser assinalado que, além do Facebook, também se tornaram muito populares outras tantas aplicações de internet onde os usuários têm a liberdade de criar perfis próprios e delas se utilizam para o tráfego e armazenamento do mais variado tipo de dados e, também, para o fluxo de comunicação, como o Twitter, Instagram e Google+.

Ocorre que, por conta da grande popularização desse fenômeno, que pode chegar à quantidade de 30% de pessoas no mundo detentoras de perfis em redes sociais, parte considerável das pessoas no Planeta acabam deixando perfis acessíveis por longo tempo nas redes sociais, mesmo depois de mortas, levando com que seus parentes e entes queridos mais próximos deparem, mesmo que involuntariamente, com esses perfis, situação essa que, muitas vezes, tem o poder de causar-lhes enormes dor e sofrimento.

Para evitar essa indesejável situação é que estamos propondo que as contas nos provedores de aplicações de internet sejam encerradas imediatamente após a comprovação do óbito do seu titular, mas com a cautela de serem tais provedores obrigados a manter os respectivos dados da conta armazenados pelo prazo de um ano, prorrogável por igual período, sobretudo para fins de prova em apurações criminais.

Além disso, também estamos prevendo a hipótese em que esses mesmos familiares próximos do falecido resolvam manter uma espécie de memorial a partir dessa mesma conta, que, contudo, somente poderá? ser gerenciada com novas publicações no perfil do falecido e outras ações que se fizerem necessárias, se o falecido tiver deixado previamente estabelecido quem poderá? gerenciar a sua conta após a sua morte.

Deve ser notado que essas medidas já? se encontram previstas em termos de uso de algumas aplicações de internet, sem, contudo, que tenha sido conferido um tratamento uniforme à matéria, razão pela qual entendemos conveniente a apresentação deste projeto de lei, a fim de assegurar aos entes queridos do usuário falecido a solução prevista nessas mesmas medidas.

Sendo essa matéria de interesse para grande parte dos usuários das chamadas redes sociais no nosso país, esperamos contar com o imprescindível apoio dos nossos pares para a sua aprovação.

 

Na próxima semana traremos o teor do Projeto de Lei nº 8562/2017, em trâmite na Câmara Federal de Deputados, e na seguinte considerações pessoais sobre ambos.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Sobre a herança digital (I)

A herança digital é tema que tem ganhado a atenção recente do direito civil brasileiro, especialmente por conta de sua novidade e da ausência de regulamentação jurídica no Brasil – como, a rigor, na maioria dos outros países da nossa mesma tradição. Conceitualmente, pode-se defini-la como sendo o conjunto de interesses patrimoniais e existenciais afeitos a uma pessoa existentes em suas contas virtuais em redes sociais e sítios eletrônicos em geral. Por exemplo: contas no Facebook, no Twitter, no YouTube, jogos virtuais, e-books etc. A questão central é: quais destinações dar a esses bens e a essas informações sensíveis após a morte da pessoa titular?

Duas vertentes principais têm sido formadas: uma primeira pretende tratar esse tópico pelo regime jurídico dos direitos da personalidade, principalmente quanto aos dados sensíveis existentes em redes sociais; uma segunda, pelo regime jurídico do direito das sucessões, usando como um de seus argumentos a possibilidade de haver disposições testamentárias (espécie de sucessão) tanto quanto aos interesses patrimoniais quanto aos existenciais. Nesse sentido, preceitua o Código Civil em seu art. 1.857, § 2º: “São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”.

Há, por certo, uma preocupação central com a privacidade post mortem no tema da herança digital. Mas a isso não está restrito. Há também preocupações com a privacidade de terceiros, haja vista relacionamentos virtuais e conversas que possam ter sido travado entre a pessoa falecida e estes, bem como preocupações com aspectos estritamente patrimoniais, haja vista a possibilidade de imediata aferição pecuniária de bens jurídicos virtuais (como, por exemplo, e-books, jogos virtuais e contas que geram receitas no YouTube e Instagram). Nesse último ponto, a dúvida é sobre a quem seriam destinados tais direitos patrimoniais.

As dúvidas vão surgindo e se replicando por conta da ausência de um regramento jurídico da herança digital no Brasil. Mas já há discussões legislativas nesse sentido, havendo dois projetos de lei de maior repercussão: os Projetos de Leis nº 7742/2017 e 8562/2017, ambos em trâmite na Câmara Federal dos Deputados.

Trataremos de ambos nas próximas semanas.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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O problema da "herança digital"

Tema que tem sido cada vez mais debatido no Direito é o do novo problema da herança digital, fruto da virtualização de vários aspectos da vida civil:

 

 

Nas próximas semanas esse será o tema aqui em apresentação.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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A proposta de reforma da Previdência

Se as novas regras da Previdência forem aprovadas como quer o Governo, a idade mínima de aposentadoria para os homens será 65 anos, e para as mulheres, 62; e deve haver uma economia de cerca de R$ 1 trilhão em 10 anos. A proposta de reforma da Previdência é a PEC 6/2019.

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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“Constituição do Brasil é a melhor do mundo”

O ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto elogia a Constituição de 1988, considerando-a um documento que torna o Brasil um país de primeiro mundo do ponto de vista jurídico. Para ele, se o Brasil tem andado mal das pernas é porque tem andado de costas para sua Constituição. Confira no programa Constituição 30 anos com a jornalista Glauciene Lara, da TV Senado:

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Luto

Nesta semana, a Coluna presta sua silenciosa e sincera homenagem à memória do jornalista Ricardo Eugênio Boechat, um dos maiores do Brasil em sua profissão e lamentavelmente falecido ontem em acidente aéreo.

O condomínio em multipropriedade (III)

Por fim, apresentando os grandes benefícios da regulamentação da multipropriedade para o mercado imobiliário e para o turismo, segue excelente texto do Prof. Dr. Gustavo Tepedino, pioneiro do tema no Brasil. Tive a honra de ter sido seu orientando em meu doutoramento em Direito Civil pela UERJ, em tema posto neste universo dos direitos reais.

Essa nova modalidade tem imenso potencial de acelerar o desenvolvimento do turismo no litoral do Piauí, com o lançamento de novos empreendimentos sob a forma de multipropriedade imobiliárias. Vale a leitura!

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A multipropriedade e a retomada do mercado imobiliário

Por Gustavo Tepedino

Em 20 dezembro de 2018 foi promulgada a Lei 13.777, que regulamenta a multipropriedade imobiliária, dando nova redação ao artigo 1.358 do Código Civil e aos artigos 176 e 178 da Lei 6.015/73, a Lei de Registros Públicos. O mercado imobiliário finalmente ganha esse atrativo produto para novos investimentos no segmento dos imóveis para férias.

Trata-se do fracionamento no tempo da titularidade dominical. Dividem-se em frações semanais os imóveis oferecidos aos multiproprietários, que terão, assim, sua casa de campo ou de praia em determinado período do ano. A recente lei brasileira, acertadamente, regulou a multipropriedade como unidade autônoma, delimitada no tempo e no espaço, inserida no regime de condomínio especial. O legislador trouxe a segurança que faltava ao setor, permitindo que os investimentos se proliferem, como em diversos outros países, onde obtiveram êxito extraordinário.

De fato, essa nova forma de utilização de bens, nascida na França em 1967, foi difundida amplamente na Europa e nos Estados Unidos pelas mãos de empresários, que se anteciparam aos legisladores, como ocorreu com os grandes condomínios urbanos e os shopping centers. Nos países europeus e nos Estados Unidos, aliás, o sistema se expandiu para o mercado de bens móveis, sendo praticado o time sharing sobre aviões, helicópteros e barcos, por exemplo.

Com a divisão do uso de imóveis em temporadas, usualmente semanais, numerosos proprietários utilizam, alternadamente, cada qual a seu turno, o mesmo local. Dessa forma, franqueou-se o mercado a novas camadas sociais, que de outra forma não teriam acesso à segunda casa. Famílias que pretendiam adquirir a casa de campo ou de praia apenas para o período de férias anuais satisfazem sua aspiração a preço relativamente modesto. Reduzem-se, por outro lado, as despesas e os incômodos com a manutenção e a segurança do imóvel, itens cada vez mais dispendiosos quando se adquire a propriedade nos moldes tradicionais.

Além disso, para os empresários do setor, aumenta-se a margem de lucro, dada a grande quantidade de unidades que, com a subdivisão temporal, são postas à venda em cada empreendimento. Com preços diferenciados ao longo do ano, a depender da valorização do mês escolhido (verão ou inverno; épocas de férias escolares ou período letivo), adaptam-se os adquirentes, segundo seu estilo de vida e respectivo poder aquisitivo, ao planejamento estratégico do instituidor e ao calendário turístico da região.

Do ponto de vista da indústria turístico-hoteleira e de serviços, a economia das regiões turísticas é aquecida de forma uniforme em todos os períodos do ano, não mais de modo sazonal. Ao se promoverem o desenvolvimento e a estabilidade do comércio local de maneira contínua, o equilíbrio ecológico é favorecido na medida em que se resguarda o meio ambiente contra a proliferação indiscriminada de construções, por vezes subutilizadas ou descuidadas.

Com esse mecanismo, diversos mercados imobiliários conseguiram superar a crise recessiva em que se encontravam (como ocorreu na Espanha, em Portugal e na Itália, quando do surgimento das respectivas leis nacionais e da diretiva europeia). Associados à gestão hoteleira, os serviços se sofisticaram e os empreendimentos se aperfeiçoaram. Problemas frequentes ocasionados pelo mau uso de unidades ou necessidade de suspensão da utilização para manutenção periódica foram resolvidas pela gestão hoteleira inteligente, que potencializa o conjunto das unidades — em sistema de pool —, oferecendo em locação, inclusive, as unidades dos multiproprietários que não pretendam, em determinado ano, utilizar o seu imóvel.

Ao lado disso, o investimento por multiproprietários permitiu a captação de recursos para a construção de empreendimentos mistos — de hotelaria e multipropriedade —, nos quais apenas parte das unidades é posta à venda pelo instituidor, que conserva sob sua propriedade volume estratégico de unidades destinadas diretamente à oferta hoteleira. Por outro lado, criaram-se bancos de time sharing de diversos países, permitindo que o multiproprietário possa, a cada ano, trocar a utilização de sua unidade por uma semana em local turístico de qualquer continente (intercâmbio associado ao pool hoteleiro de imóveis disponíveis).

À míngua da intervenção legislativa, a prática brasileira pregressa utilizou-se da instituição de condomínio ordinário entre os titulares de cada apartamento inserido em condomínio edilício. Desse modo, 52 condôminos de um mesmo apartamento estabeleciam, contratualmente, o direito de uso de cada titular por uma semana do ano. Inúmeros inconvenientes decorriam dessa fórmula, que, dentre outros problemas, implicava o direito de preferência dos condôminos no caso de venda por qualquer titular e a divisibilidade do condomínio a qualquer momento, a pedido de um único condômino, após o prazo de cinco anos da indivisibilidade do condomínio ordinário prevista pelo Código Civil (artigo 1.320, parágrafo 2º). O Superior Tribunal de Justiça, em decisão por maioria da 4ª Turma, com relatoria para acórdão do ministro João Otavio de Noronha, admitiu a natureza típica de direito real da multipropriedade, rejeitando, no caso examinado, a penhora do imóvel por dívida de um dos condôminos, de modo a preservar as frações ideais dos demais multiproprietários (REsp 1.546.165/SP). Não havia, contudo, unanimidade sobre o tema.

Todas essas incertezas foram resolvidas com o reconhecimento, pelo legislador brasileiro, da autonomia de cada unidade, individualizada no espaço (apartamento 101, por exemplo) e no tempo (primeira semana de agosto de cada ano, por exemplo) com sua respectiva matrícula no registro de imóvel, inserida em regime de condomínio edilício.

Essa fórmula, agora normatizada, foi proposta na minha tese apresentada à Faculdade de Direito da Uerj em concurso para titular de Direito Civil em 1990. O saudoso professor Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto da Lei 4.591/64, aprovado pelo Congresso Nacional sem nenhuma emenda parlamentar (!), membro da banca examinadora, honrou-me com a nota máxima e disse concordar inteiramente com a possibilidade de registro de condomínio edilício composto de multipropriedades. Até então, a maior parte dos juristas considerava que a multipropriedade seria direito real atípico que, como tal, não poderia ser instituída no Brasil sem previsão legislativa. Na ocasião, respeitados registradores com quem conversei consideraram perfeitamente registrável a instituição de condomínio, ainda na vigência da Lei de Condomínios e Incorporações (Lei 4591/64), com a individualização de unidades autônomas mediante a delimitação espacial e temporal (ainda no aludido exemplo, o apartamento 101 comporta 52 unidades autônomas, número de semanas do ano). Tal posição, entretanto, nem sempre foi compartilhada pelas corregedorias.

Pois bem: por se tratar de unidade autônoma, o IPTU há de ser individualizado e cobrado de cada multiproprietário, assim como as despesas de luz, gás e água próprias da respectiva unidade, sendo repartidas por cada multiproprietário as taxas condominiais que, como obrigações propter rem, oneram o patrimônio pessoal de cada titular. Essa questão se torna relevante na medida em que o presidente da República vetou dispositivos (parágrafos 3º, 4º e 5º do artigo 1.358-J do Código Civil) em cuja dicção se lia: parágrafo 3º: “Os multiproprietários responderão, na proporção de sua fração de tempo, pelo pagamento dos tributos, contribuições condominiais e outros encargos que incidam sobre o imóvel”; e parágrafo 4º: “Cada multiproprietário de uma fração de tempo responde individualmente pelo custeio das obrigações, não havendo solidariedade entre os diversos multiproprietários”. Tal veto, contudo, não altera a autonomia das matrículas, devendo ser afastada, portanto, qualquer interpretação que pretendesse atribuir ao conjunto dos multiproprietários de um mesmo apartamento a responsabilidade solidária das referidas despesas individuais.

Para preservar o empreendimento como um todo, o artigo 1.358-S, no caso de inadimplemento das taxas condominiais, prevê “a adjudicação ao condomínio edilício da fração de tempo correspondente”. Tal medida temporária, que caracteriza uma espécie de anticrese legal, perdurará “até a quitação integral da dívida”, proibindo-se ao multiproprietário a utilização do imóvel enquanto persistir a inadimplência. Tal providência, bastante drástica, terá que ser regulada na convenção, assegurando-se o amplo direito de defesa de cada titular, podendo o condomínio inserir a respectiva unidade no pool hoteleiro, desde que haja previsão, nos termos da convenção, de tal destinação econômica.

Nota dissonante mostra-se a previsão do artigo 1.358-T, segundo o qual “o multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a seu direito de multipropriedade em favor do condomínio edilício”. Há aqui constrangedora incompatibilidade com o sistema, não se compreendendo o que pretendeu o dispositivo. A rigor, por se tratar de unidade autônoma, o multiproprietário pode, como em qualquer condomínio edilício, dispor como bem entender de seu direito real de propriedade, de modo gratuito ou oneroso, desde que mantenha íntegro o liame visceral entre a propriedade individual (que lhe franqueia a utilização, com exclusividade, da fração semanal que lhe diz respeito) e a fração ideal a ela correspondente sobre as áreas comuns.

No mais, o legislador procurou regular, de forma minuciosa, a administração do empreendimento, compatibilizando os interesses dos multiproprietários e do condomínio. Há numerosos pontos a serem aprofundados. Autorizou-se, inclusive, a previsão, pelo instituidor, de fração de tempo adicional destinada à realização de reparos, que constará da matrícula de cada unidade, como área (espaço-temporal) comum, sem matrícula específica, para compartilhar-se o ônus da manutenção das unidades. Trata-se de opção do instituidor (artigo 1.358, N). Em última análise, tem-se agora segurança jurídica para a expansão da multipropriedade no Brasil. Está de parabéns o Congresso Nacional e, em particular, o autor do projeto, senador Wilder Morais, a quem não conheço pessoalmente, que teve a prudência de auscultar a sociedade e incorporar sugestões.

Oxalá seja possível aproveitar essa oportunidade para se aquecer o mercado, na esteira do otimismo econômico que se tem intensificado no setor turístico-hoteleiro para a próxima década. Afinal, a vocação brasileira para o turismo mostra-se inegável e é preciso saber aproveitar as oportunidades de negócios para, com segurança jurídica, desenvolvermos, ainda que tardiamente, as nossas potencialidades.

Gustavo Tepedino é sócio-fundador do Gustavo Tepedino Advogados, professor titular de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Fonte: Conjur

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Há, portanto, nova janela de oportunidade para empreendimentos imobiliários em nosso belo litoral, que tem atraído cada vez mais turistas de todo o Brasil. Mas é importante se ressaltar que essa nova modalidade, do condomínio em multipropriedade, demanda assessoria jurídica especializada para sua estruturação, dada a sua sofisticação.

Mãos à obra!

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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O condomínio em multipropriedade (II)

No referido recurso especial, a parte recorrente se insurgiu contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que negara provimento a embargos de terceiro apresentado por si. Nestes, buscava o reconhecimento da ilegalidade de penhora feita em virtude de dívida condominial sobre a totalidade de uma unidade habitacional em determinado condomínio de veraneio sito em Búzios/RJ. Fundamentava seu argumento no fato de ser proprietária de 2/52 avos da referida unidade, com autorização para uso durante as semanas onze e doze de cada ano. Isso porque o referido imóvel estaria registrado “na modalidade de time-sharing, tendo sido subdividido, antes da comercialização, em 52 frações ideias, pertencendo, portanto, a titulares diversos”. As cinquenta e duas frações representariam idealmente as cinquenta e duas semanas de cada ano, de modo a possibilitar o uso exclusivo por cada titular durante uma semana por ano para cada fração ideal de que seja proprietário.

Em primeira instância, os embargos foram rejeitados sob o fundamento de que a relação jurídica alegada pela embargante se revestiria de natureza obrigacional, e não de direito real. Ela seria, conforme a sentença, mera cessionária de direitos. Apresentado recurso de apelação, o Tribunal manteve a rejeição por também considerar que a relação jurídica encetada pela recorrente seria obrigacional.

Irresignada, apresentou recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, que foi distribuído para a sua Terceira Turma. Neste, alegou que firmara contrato preliminar, na modalidade de instrumento particular de promessa de cessão de direitos, no qual o promitente (formalmente proprietário da unidade penhorada) se obrigara a lhe outorgar a escritura translativa de sua fração ideal. Por isso, alegou que a relação jurídica estaria lastreada em direito real, e não obrigacional. O contrato preliminar, conforme sua defesa, atestaria que ela seria multiproprietária do bem imóvel, e não mera cessionária de direitos sobre ele incidentes. Teria havido, inclusive, registro de multipropriedade em outra unidade habitacional no mesmo condomínio.

O relator, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, votou por negar provimento ao recurso, por concluir que “o contrato de time-sharing não garante direito real, mas mero direito pessoal”, pelo que seria “perfeitamente possível a penhora do imóvel sob o qual incide a multipropriedade, como decidido pelo Tribunal de origem”. Disse ainda que não seria possível a criação de um novo direito real por convenção privada, inclusive por suposta vedação constante na Lei Federal nº 6.015/1973. Resumindo a qualificação jurídica que teria a multipropriedade, afirmou:

 

Pelo sistema da multipropriedade, o imóvel figura como propriedade de um empreendedor que concede e organiza a utilização periódica do bem e que tem a prerrogativa de representar os titulares do contrato de time-sharing. Malgrado o nome do instituto, o direito dos adquirentes é meramente pessoal, sujeitando-se a extenso rol de preceitos obrigacionais previstos em convenção ou regulamento interno e que deverão ser respeitados a fim de possibilitar a fruição do bem. Em verdade, trata-se de situação jurídica complexa e atípica que envolve relações obrigacionais específicas interligadas por diversas fontes de interesses - os multiproprietários entre si, e entre estes e a administração do empreendimento - em colaboração recíproca para a satisfação na utilização do bem.

 

Em voto-vista, o Min. João Otávio de Noronha, reconhecendo a (já exteriorizada pelo relator) dificuldade de enquadramento jurídico da multipropriedade como direito real ou obrigacional, expressamente colheu a doutrina de Gustavo Tepedino, e deu provimento ao recurso por concluir que a relação jurídica em análise mais se compatibilizaria com o regime dos direitos reais. Isso porque, como no início do capítulo transcrito,

 

Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.

 

Assim, afastou a objeção que haveria não apenas para a modulação negocial do conteúdo de direitos reais já existentes em lei. Mais do que isso: defendeu que não haveria qualquer vedação à consagração de novos direitos reais, pelo que deveria a multipropriedade ser reconhecida como tal. Isso não traria insegurança às relações socioeconômicas; ao contrário, a sua rejeição que o faria, ao deixar no limbo jurídico uma modalidade de propriedade imobiliária já amplamente utilizada no Brasil. Em conclusão de seu voto, disse expressamente que “a multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real”.

O voto-vista foi seguido pelos demais componentes da Terceira Turma, ficando vencido o relator. Acompanharam a divergência: Min. Marco Aurélio Bellizze, Min. Moura Ribeiro e Min. Paulo de Tarso Sanseverino. O último, inclusive, disse que o acórdão fez um avanço no sistema brasileiro ao admitir, e dar proteção jurídica, à multipropriedade (time-sharing), “um instituto novo e extremamente útil socialmente para que se confira segurança aos adquirentes dessas frações da propriedade”.

Esse precedente do Superior Tribunal de Justiça, responsável pela uniformização da jurisprudência atinente à legislação federal, é um marco na teoria do direito civil patrimonial brasileiro e, de imediato, serve de paradigma para cotejo analítico com outros eventuais acórdãos subsequentes de tribunais a quo que, porventura, não reconhecessem feições de situação real a outras multipropriedades. Inclusive, ou sobretudo, em procedimentos de suscitação de dúvida perante ofícios de registro imobiliário que venham a ser julgados por decisão judicial.

Na próxima semana se dará seguimento à apresentação da multipropriedade como nova forma especial de condomínio.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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