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Você protege seus dados pessoais?

Por Marcelo Leonardo de Melo Simplício

Advogado e Professor de Direito Civil, criador d'O Civilista

 

Quem nunca clicou num botão com os seguintes dizeres: “Li e concordo com os termos de uso”? Mesmo que você não seja do tipo que usa a internet através de computadores ou notebooks, ainda assim é muito provável que tenha concordado com os tais “termos de uso” todas as vezes que baixou algum aplicativo novo no seu smartphone.

Ainda que você seja daqueles que não utilizam com frequência smartphones (se é que ainda existem pessoas assim), é pouco provável que já tenha escapado, em alguma loja ou farmácia, da seguinte pergunta: “O senhor já tem cadastro?”. O fato é que, seja no ambiente virtual ou mesmo no mundo físico, somos constantemente bombardeados com tentativas de obtenção dos nossos dados pessoais. Mas você já parou para se perguntar por qual motivo as empresas estão cada vez mais interessadas nisso?

O curioso é que temos uma grande preocupação com nossa privacidade “em abstrato”, mas, “em concreto”, fornecemos indiscriminadamente nossos múltiplos dados pessoais. Assim, se você já concordou com alguns termos de uso na internet, é muito provável que seus aplicativos tenham acesso ao microfone e à câmera do seu smartphone, o que significa que você pode não ter uma vida tão privada e discreta quanto imagina, pois suas conversas e imagens estão sendo analisadas pelos algoritmos. Além disso, vários aplicativos conseguem demonstrar claramente por onde você andou física e virtualmente nos últimos meses, quais locais e sites você frequentou, quanto tempo permaneceu lá e muitas coisas mais.

Está ficando preocupado? Calma, pode piorar. Uma das poucas coisas que você tinha com exclusividade na vida era sua impressão digital, mas agora ela já circula em várias nuvens de armazenamentos de dados da internet, pois você certamente já fez cadastramento biométrico em muitos locais. Seu rosto e seu corpo também podem já ter sido mapeados através de programas que fazem reconhecimento facial e determinam até a forma que certas pessoas caminham.  

E se o cadastro que você fez numa simples farmácia gerar uma série de informações pessoais, como os remédios que você comprou nos últimos anos? Imagine agora se esses dados forem parar numa seguradora ou mesmo numa empresa de plano de saúde. Certamente seu perfil de contratante será analisado com base no histórico de compra de medicamentos, o que pode gerar uma série de restrições ou mesmo discriminações por parte da empresa detentora dos seus dados.

São inúmeros os casos e poderíamos passar horas citando as mais absurdas situações relativas aos abusos cometidos com a utilização indevidas dos dados pessoais. Na verdade, tudo isso vem ocorrendo porque vivemos numa sociedade cada vez mais conectada e exposta. Logo, nesse contexto, informação é poder!

 É nessa realidade caótica que surgiu a LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Federal nº13.709, de 14/08/2018), para regulamentar o tratamento de dados pessoais feito por instituições privadas e públicas. A lei procura, portanto, proteger a privacidade das pessoas, atualmente entendida não apenas como o isolamento pessoal, mas também como o controle que cada indivíduo deve ter sobre as informações a seu respeito (autodeterminação informativa). 

Neste ponto, devemos lembrar que os dados não estão limitados a nome, idade e endereço, mas também localizações, placas de veículos, histórico de compras, informações acadêmicas etc. Existem ainda uma atenção especial com os chamados “Dados Sensíveis”, ligados às questões da personalidade, como convicção religiosa, saúde, vida sexual, informação genética, biométrica e étnica, dentre outras. 

A nova lei estabelece que o cadastramento de dados deve ter uma finalidade muito clara, justificada e devidamente informada ao titular, sem possibilidades de posterior utilização indevida. Dessa forma, o titular fica protegido contra repasses dos seus dados de forma não autorizada, pois o consentimento para o compartilhamento dos dados passa a ser fundamental a partir de agora.

Para tanto, a lei prevê vários mecanismos de responsabilização e monitoramento, em especial, pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, uma espécie de agência reguladora (como a Anatel), cuja criação vinha enfrentando problemas, mas foi aprovada na semana passada pela Câmara e pelo Senado. 

Com a LGPD, as empresas precisarão reformular amplamente suas políticas de coleta e tratamento de dados alheios, pois a privacidade volta a ser protagonista nas relações negociais em geral, e qualquer dado solicitado de um cliente precisa ser previamente justificado por quem solicita e autorizado por quem fornece. 

Por fim, vale lembrar que a Lei ainda está no prazo de vacatio legis (18 meses) e só entrará em vigor em fevereiro de 2020, mas não devemos deixar para a última hora nosso interesse por uma norma tão importante!

Biografias não autorizadas, liberdade de expressão e direito à privacidade

O Prof. Dr. Anderson Schreiber, Titular de Direito Civil da UERJ, fala sobre as biografias não autorizadas e o embate liberdade de expressão versus direito à privacidade:

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

www.rochafurtado.com.br

A prática de “spoiler” e as novas tendências de responsabilidade civil

Por Manoela Frazão Diógenes

Acadêmica de Direito (UFPI)

 

Em 2015, Benjamin Johnson, professor na VU University Amsterdam, realizou um estudo que buscava aferir qual a real interferência da prática de “spoiler” na experiencia imersiva do consumidor na obra. O estudo funcionava da seguinte forma: 412 estudantes deveriam ler diversas pequenas histórias inéditas. Entretanto, antes de começar a ler a história, eles recebiam resumos, alguns contendo spoilers e outros não. Constatou-se que os leitores que leram os resumos que continham os spoilers classificaram a história como menos comovente, menos intrigante e que a obra não havia sido bem-sucedida em atrair o leitor para o mundo narrativo e proporcionar uma experiencia imersiva completa.

O efeito negativo da prática de “spoiler” na experiência imersiva do consumidor não é constatado apenas empiricamente. Ao analisar etimologicamente a palavra “spoiler” (variação de to spoil, que significa estragar) é perceptível o caráter pejorativo da prática. Porém, a dúvida que surge é quanto ao dano gerado por esta prática. Haveria dano patrimonial? Haveria dano moral? Seria passível de indenização, reparação ou compensação?

Olhando a situação sob a ótica do produtor da obra, torna-se evidente o dano patrimonial sofrido por este. Como fora comprovado anteriormente, a veiculação de uma informação relevante da obra faz com que os consumidores e consumidores em potencial percam o interesse na mesma e a achem menos comovente e intrigante. Além de haver, de certa maneira, um “desmerecimento” do trabalho do autor, há também o impacto negativo na venda.

O sucesso de uma obra depende do feedback de seus consumidores, que indicam a experiência aos consumidores em potencial. Sendo a experiencia comprometida, o feedback também é negativo, não havendo o convencimento do consumidor em potencial em investir seu tempo e dinheiro e se entregar à experiencia imersiva proposta pelo feito, o que repercute diretamente e negativamente na venda da obra.

Apesar de não parecer nítida a presença do dano patrimonial, este se faz presente na medida em que o autor deixa de receber algo devido à conduta lesiva de veicular a informação relevante. Entretanto, é difícil quantificar o valor que o produtor da obra deixou de receber devido à prática de spoiler. Mesmo assim, não seria justo que a vítima suportasse tamanho dano, sendo cabível que se assegure algum tipo de reparação.

A nova postura dos tribunais quanto a aplicação da responsabilidade civil, vêm se concentrando, cada vez mais, no dano. O objetivo é assegurar, por qualquer meio disponível, a integral reparação dos prejuízos sofridos pela vítima. Tal fenômeno é reflexo do que Anderson Schreiber chama de erosão dos filtros tradicionais da responsabilidade civil, que nada mais é do que a relativa perda de importância da prova da culpa e da prova do nexo causal na dinâmica contemporânea das ações de responsabilização.

Além do que fora anteriormente apresentado, é importante também analisar a situação sob a ótica do consumidor da obra. Consumidor este que investiu seu tempo e dinheiro para que pudesse extrair a melhor experiencia possível da obra.

Todavia, falar do dano sofrido pelo consumidor é uma tarefa muito mais complexa do que demonstrar o dano sofrido pelo produtor. A dificuldade encontra-se não na demonstração da existência do dano, mas sim, na comprovação de que este é relevante para o mundo jurídico. Isso porque trata-se de demonstrar uma espécie de dano ainda não experimentada pela doutrina brasileira. Entramos, então, na esfera da expansão do dano ressarcível.

Se por um lado a criação de novas espécies de dano revela a maior sensibilidade dos tribunais à tutela de aspectos existenciais da personalidade, por outro, faz nascer um certo temor no sentido da indefinição da limitação de criação de dano, o que poderia ocasionar, uma avalanche de novas espécies de dano e, de certa forma, uma insegurança jurídica.

Por isso, defender o acesso jurídico do dano moral no tocante à prática de “spoiler” é, antes de mais nada, lutar contra o preconceito que paira sobre os ditos “novos danos” e sair da comodidade do “mero aborrecimento do cotidiano”. Para tanto, deve-se analisar uma série de novos pontos, quais sejam: (i) direito à experiencia imersiva máxima; (ii) má-fé na veiculação da informação e (iii) impacto da informação no patrimônio subjetivo da vítima. Além de, claro, levar-se em conta os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Ao investir seu tempo e dinheiro em uma obra, o consumidor tem pleno direito à experiencia imersiva máxima. Entretanto, se por algum motivo externo essa experiência imersiva não foi satisfatória, que é o que ocorre no caso da prática de spoiler, gera, indubitavelmente, o dano. Porém, a violação do direito à imersão máxima, por ter um caráter altamente subjetivo, não gera, por si só, a caracterização do ato ilícito e o dever de indenizar. Isso porque é o caráter subjetivo capaz de diferenciar o dano gerado pelo ato ilícito do “mero aborrecimento do cotidiano”, por estes motivos que se passa a analisar os próximos tópicos.

Se, ao “soltar o spoiler”, o agente o faz de má-fé, comete ato ilícito nos termos do art. 187 do Código Civil. Em que pese a garantia constitucional da liberdade de expressão, é importante destacar que, quem “solta spoiler” no intuito de “estragar” (to spoil) a experiência imersiva do outro, evidentemente excede os limites impostos pela boa-fé à liberdade de expressão e viola o direito do outro de obter a experiência imersiva máxima.

Outro ponto que deve ser abordado, e o mais importante quanto se trata da caracterização do dano moral, é o impacto que a prática gerou no patrimônio subjetivo da vítima. Para tanto, é necessário desprender-se do “temor” que paira sobre os “novos danos” e sensibilizar-se com a necessidade de tutela desses novos aspectos existenciais que surgem de acordo com a evolução da vida social.

Entendendo o dano moral como sendo um dano ao patrimônio subjetivo da vítima, nos dedicamos agora a comprovar que a prática de spoiler pode sim, em alguns casos, configurar dano moral. Uma vez que a legislação não traz uma delimitação clara sobre patrimônio subjetivo e dano moral, até porque devido ao caráter subjetivo seria uma tarefa quase impossível, é necessário que se comprove então a lesão ao patrimônio subjetivo.

Considerando casos específicos em que a vítima faz um investimento de anos dedicados à obra, tendo contato cotidianamente com a mesma e nutrindo uma relação afetiva por ela, percebe-se que esta faz parte do patrimônio subjetivo da vítima. Sendo assim, ao estragar a experiencia imersiva deste “fã”, através da prática de spoiler, indubitavelmente, há a lesão ao patrimônio subjetivo da vítima, causando não um “mero aborrecimento do cotidiano”, mas sim, um grande sofrimento de cunho pessoal, caracterizando-se, então, o dano moral passível de compensação.

Logo, conclui-se que a “prática de spoiler” pode gerar danos patrimoniais e não patrimoniais e, quanto a estes, a comprovação é uma tarefa mais complexa e que necessita da análise de vários pontos além da necessidade de haver uma sensibilização maior quanto à carência de tutela dos “novos danos”.

 

REFERÊNCIAS:

In dubio pro natura: mais proteção judicial ao meio ambiente

Uma das mais recentes inovações da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em direito ambiental, o princípio in dubio pro natura tem sido usado como fundamento na solução de conflitos e na interpretação das leis que regem a matéria no Brasil. Em alguns casos, o enfoque dado pelo tribunal é na precaução; em outros, o preceito é aplicado como ferramenta de facilitação do acesso à Justiça, ou ainda como técnica de proteção do vulnerável na produção de provas.

“Na tarefa de compreensão e aplicação da norma ambiental, por exemplo, inadmissível que o juiz invente algo que não está, expressa ou implicitamente, no dispositivo ou sistema legal; no entanto, havendo pluralidade de sentidos possíveis, deve escolher o que melhor garanta os processos ecológicos essenciais e a biodiversidade”, observou o ministro Herman Benjamin em seu ensaio sobre a hermenêutica do novo Código Florestal.

Segundo ele, esse direcionamento é essencial, uma vez que o dano ambiental é multifacetário – ética, temporal, ecológica e patrimonial –, sensível à diversidade das vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às gerações futuras e aos próprios processos ecológicos.

Ônus da prova

Nesse sentido, a jurisprudência do STJ se fundou na orientação da inversão do ônus da prova em casos de dano ambiental – ou seja, compete ao empreendedor da atividade potencialmente perigosa demonstrar que as suas ações não representam riscos ao meio ambiente.

Ao negar provimento ao REsp 883.656 – em que uma empresa condenada por contaminação de mercúrio questionava a inversão do ônus probatório determinada pelas instâncias ordinárias –, o ministro Herman Benjamin, relator, explicou que a natureza indisponível do bem jurídico protegido (meio ambiente) impõe uma atuação mais incisiva e proativa do juiz, “para salvaguardar os interesses dos incontáveis sujeitos-ausentes, por vezes toda a humanidade e as gerações futuras”.

“Por derradeiro, a incidência do princípio da precaução, ele próprio transmissor por excelência de inversão probatória, base do princípio in dubio pro natura, induz igual resultado na dinâmica da prova”, disse o ministro em seu voto.

Proposto durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, o princípio da precaução é definido como “a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados”.

Segundo o ministro Herman Benjamin, o preceito é reconhecido implícita e explicitamente pelo direito brasileiro e “estabelece, diante do dever genérico e abstrato de conservação do meio ambiente, um regime ético-jurídico em que o exercício de atividade potencialmente poluidora, sobretudo quando perigosa, conduz à inversão das regras de gestão da licitude e causalidade da conduta, com a imposição ao empreendedor do encargo de demonstrar a sua inofensividade”.

De acordo com Herman Benjamin, o in dubio pro natura tem origem no princípio in dubio pro damnato (na dúvida, em favor do prejudicado ou da vítima), adotado na tutela da integridade física das pessoas. “Ninguém questiona que, como direito fundamental das presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado reclama tutela judicial abrangente, eficaz e eficiente, não se contentando com iniciativas materiais e processuais retóricas, cosméticas, teatrais ou de fantasia”, ressaltou.

Como consequência, afirmou o relator, o direito processual civil deve ser compatibilizado com essa prioridade, facilitando o acesso à Justiça aos litígios ambientais. “No contexto do direito ambiental, o adágio in dubio pro reo é transmudado, no rastro do princípio da precaução, em in dubio pro natura, carregando consigo uma forte presunção em favor da proteção da saúde humana e da biota”.

Dano moral ambiental

Também amparada pelo princípio in dubio pro natura, em 2013, a Segunda Turma do STJ estabeleceu que é possível condenar o responsável pela degradação ambiental ao pagamento de indenização relativa ao dano extrapatrimonial ou dano moral coletivo. No julgamento do REsp 1.367.923, o colegiado confirmou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou três empresas em R$ 500 mil por dano moral ambiental em razão do armazenamento inadequado de produtos danificados confeccionados em amianto.

Ao STJ, as empresas alegaram que, em matéria de responsabilidade objetiva, tal qual a ambiental, a presença do dano é condição indispensável para gerar o dever de indenizar. Para elas, os danos morais coletivos e difusos devem estar fundados não só no sentido moral individual, mas nos efetivos prejuízos à coletividade, desde que demonstrados.

O relator do recurso especial, ministro Humberto Martins, lembrou que o colegiado já se pronunciou no sentido de que, ainda que de forma reflexa, a degradação do meio ambiente dá ensejo ao dano moral coletivo. Para ele, mesmo que a jurisprudência não contemple a análise específica do ponto em debate, “infere-se que é possível a condenação à indenização por dano extrapatrimonial ou dano moral coletivo, decorrente de lesão ambiental”.

Ao citar precedente do ministro Herman Benjamin, o relator ressaltou que “a responsabilidade civil ambiental deve ser compreendida da forma mais ampla possível, de modo que a condenação a recuperar a área prejudicada não exclua o dever de indenizar”.

O ministro também afirmou que o artigo 1° da Lei 7.347/1985 prevê expressamente a viabilidade da condenação em danos morais nas ações civis públicas – regramento que não faz restrições no que concerne à possibilidade de extensão à coletividade.

“Haveria contrassenso jurídico na admissão de ressarcimento por lesão a dano moral individual sem que se pudesse dar à coletividade o mesmo tratamento; afinal, se a honra de cada um dos indivíduos deste mesmo grupo é afetada, os danos são passíveis de indenização”, disse.

Ao concluir, Humberto Martins ressaltou que as normas ambientais “devem atender aos fins sociais a que se destinam, ou seja, necessária a interpretação e integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura”.

Cumulação

A possibilidade de acumular a condenação de recomposição do meio ambiente degradado com a indenização pecuniária também já foi objeto de diversos recursos no STJ, nos quais a solução se baseou no princípio in dubio pro natura – como no REsp 1.198.727.

O recurso teve origem em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais para obter a responsabilização por danos ambientais causados pelo desmatamento de vegetação nativa (cerrado). O juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça consideraram provado o dano ambiental e condenaram o réu a repará-lo; porém, julgaram improcedente o pedido indenizatório pelo dano ecológico pretérito e residual.

O relator do recurso, Herman Benjamin, explicou que “os deveres de indenização e recuperação ambientais não são ‘pena’, mas providências ressarcitórias de natureza civil que buscam, simultânea e complementarmente, a restauração do status quo ante da biota afetada (restabelecimento à condição original) e a reversão à coletividade dos benefícios econômicos auferidos com a utilização ilegal e individual de bem supraindividual salvaguardado que, nos termos do artigo 225 da Constituição, é de uso comum do povo”.

De acordo com o ministro, ao juiz, diante das normas de direito ambiental, “recheadas que são de conteúdo ético intergeracional atrelado às presentes e futuras gerações”, incumbe lembrar o comando do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que dispõe que, ao aplicar a lei, deve-se atender “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

“Corolário dessa regra é a constatação de que, em caso de dúvida ou outra anomalia técnico-redacional, a norma ambiental demanda interpretação e integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura”, ressaltou.

Herman Benjamin destacou que, ao responsabilizar civilmente o infrator ambiental, não se deve confundir prioridade da recuperação in natura do bem degradado com impossibilidade de cumulação simultânea dos deveres de repristinação natural (obrigação de fazer), compensação ambiental e indenização em dinheiro (obrigação de pagar), e abstenção de uso e de nova lesão (obrigação de não fazer).

“A cumulação de obrigação de fazer, não fazer e pagar não configura bis in idem, porquanto a indenização, em vez de considerar lesão específica já ecologicamente restaurada ou a ser restaurada, põe o foco em parcela do dano que, embora causada pelo mesmo comportamento pretérito do agente, apresenta efeitos deletérios de cunho futuro, irreparável ou intangível”, afirmou o ministro em seu voto.

Registro legal

Em 2015, ao dar provimento ao REsp 1.356.207, do Estado de São Paulo, a Terceira Turma condicionou o registro da sentença de usucapião ao prévio registro da reserva legal no Cadastro Ambiental Rural (CAR), integrando a interpretação da lei ao princípio in dubio pro natura.

O relator do recurso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, explicou que, por uma construção jurisprudencial, firmou-se o entendimento no STJ de que a averbação de reserva legal seria condição para o registro de qualquer ato de transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel rural.

No entanto, a dúvida gerada nas instâncias ordinárias referiu-se ao caso de aquisição originária por usucapião de imóvel sem matrícula. Nas suas razões de decidir, o ministro destacou o parecer do Ministério Público Federal (MPF), o qual opinou pela necessidade da averbação, uma vez que a reserva legal “ostenta natureza propter rem, ou seja, é inerente ao direito de propriedade ou posse de bem imóvel rural”.

Para o relator, a interpretação dada pelo MPF ao Código Florestal vigente à época dos fatos (Lei 4.771/1965) “está em sintonia com o princípio hermenêutico in dubio pro natura, que deve reger a interpretação ambiental para priorizar o sentido da lei que melhor atenda à proteção do meio ambiente”.

Segundo Sanseverino, esse princípio constitui uma exceção à regra hermenêutica de que as normas limitadoras de direitos – como são as ambientais – devam ter interpretação estrita. “A exceção é justificada pela magnitude da importância do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, ressaltou.

O relator afirmou que uma interpretação estrita do dispositivo legal poderia levar à conclusão de que a aquisição originária, por não estar expressamente prevista, estaria excluída da necessidade de averbação da reserva legal no ato de registro. Para ele, a dispensa, no caso de aquisição por usucapião, reduziria demasiadamente a eficácia da norma ambiental.

A interpretação estrita, segundo Sanseverino, conduziria a um “resultado indesejável”, contrário à finalidade protetiva da norma. O ministro observou que é possível tomar a palavra “transmissão” em sentido amplo, abrangendo também a usucapião.

“Esse sentido mais amplo está em sintonia com o princípio in dubio pro natura, pois, havendo diversos sentidos de um dispositivo legal, deve-se privilegiar aquele que confere maior proteção ao meio ambiente”, ressaltou.

 

Fonte: Superior Tribunal de Justiça

Grupo de Estudos e Pesquisas “Direito Civil XXI”

A partir do segundo semestre deste ano, o Grupo de Estudos e Pesquisas “Direito Civil XXI”, liderado por mim, voltará à ativa. Serão ofertadas 25 vagas, e qualquer interessado que preencha os requisitos do Edital pode se inscrever.

Para ter acesso ao Edital, clique aqui.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Violação Positiva do Contrato

O vídeo dessa semana (inscreva-se no canal clicando aqui) traz uma brevíssima exposição sobre a “violação positiva do contrato”, tese desenvolvida na Alemanha por Hermann Staub. Veja:

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Canal no YouTube

O Autor desta Coluna agora conta com um canal no YouTube para divulgação de vídeos com conteúdo jurídico. Inscreva-se clicando aqui.

O primeiro deles é um pequeno documentário sobre a restauração da Galeria Histórica da Faculdade de Direito da UFPI, realizada durante o período em que estiveram na Chefia do Departamento de Ciências Jurídicas os Professores Gabriel Furtado e Éfren Cordão (2016-2018):

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Educação para o futuro

O biólogo Átila Iamarino fala sobre o estado atual dos métodos educacionais e o que podemos fazer para melhorá-los:

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Sobre a herança digital (IV)

Como visto, o problema da herança digital se liga primordialmente a questões cíveis afeitas ao estado das coisas após a morte de uma pessoa. Tangencialmente pode afetar terceiras pessoas outras para além dos seus herdeiros, mas é antes e sobretudo uma questão que se relaciona à personalidade da pessoa falecida. Por isso, o tratamento legal desse problema fica melhor situado no Código Civil que no Marco Civil da Internet. Assim, inicia melhor sua caminhada o Projeto de Lei nº 8562/2017 que o Projeto de Lei nº 7742/2017 – ambos em trâmite na Câmara Federal de Deputados.

Este último, que pretende promover alterações no Marco Civil da Internet, além de tratar a questão da herança digital pela imposição de deveres a terceiros, é confuso. Inicialmente prevê que os provedores de aplicações na internet devem excluir as contas de brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito (art. 10-A, caput). Mas já na sequência diz que essa exclusão depende de requerimento de seus herdeiros, obedecida a linha sucessória (§ 1º). E logo após afirma que esses herdeiros poderão requerer que as contas sejam mantidas (§ 3º). Ou seja: parece não ser claro ao projeto quanto a quais são os efeitos automáticos e imediatos decorrentes do falecimento de pessoa titular de contas virtuais em provedores de aplicações da internet.

Já o primeiro projeto, que pretende incluir disposições legais no Código Civil, além de melhor situado dentro do ordenamento jurídico, aparenta tratar a princípio de forma mais clara e adequada a questão. Isto porque traz maior abrangência, ao incluir dentro da herança digital tanto interesses existenciais quanto patrimoniais, e por possibilitar a constituição de herdeiro testamentário apenas para o trato da herança digital (arts. 1.747-A e 1.747-B). Por fim, abre possibilidades variadas para o destino das contas virtuais da pessoa falecida, não prevendo um efeito jurídico automático mas deixando isso a cargo do herdeiro por elas responsável: transformação em memorial, exclusão de dados pessoais da pessoa falecida ou a remoção da conta (art. 1.747-C).

Um ponto que talvez pudesse ser melhorado seria a previsão de que a herança digital deveria ser transmitida “em bloco” a um único herdeiro, no que tange aos interesses existenciais. Isso para que haja uniformidade no tratamento dado às contas virtuais da pessoa falecida. Já os interesses patrimoniais poderiam ser transmitidos “em fatias” aos herdeiros em geral, conforme as leis sucessórias já vigentes.

Certo é que o Congresso Nacional andaria bem legislasse com celeridade sobre essa questão, a fim de diminuir as dúvidas existentes e o estado de relativa insegurança jurídica quanto à herança digital.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Sobre a herança digital (III)

O Projeto de Lei nº 8562/2017, em trâmite na Câmara Federal de Deputados, propõe o acréscimo de um capítulo inteiro ao Código Civil, a ser composto pelos arts. 1.797-A ao 1.797-C, a fim de preceituar expressamente sobre a herança digital. Sua redação seria essa:

 

Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:

I – senhas;

II – redes sociais;

III – contas da Internet;

IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.

Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.

Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:

I - definir o destino das contas do falecido;

a) - transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;

b) - apagar todos os dados do usuário ou;

c) - remover a conta do antigo usuário.

 

A justificativa apresentada na propositura foi a seguinte:

 

Tudo o que é possível guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos, passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada “herança digital”.

O Caderno TEC da Folha de S.Paulo trouxe uma reportagem sobre herança digital a partir de dados de uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres). O estudo mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já? estão incluindo em testamentos quem herdará seu legado virtual, ou seja, vídeos, livros, músicas, fotos e e- mails.

No Brasil, esse conceito de herança digital ainda é pouco difundido. Mas é preciso uma legislação apropriada para que as pessoas ao morrerem possam ter seus direitos resguardados a começar pela simples decisão de a quem deixar a senha de suas contas virtuais e também o seu legado digital.

Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, o presente Projeto de Lei pretende assegurar o direito dos familiares em gerir o legado digital daqueles que já? se foram.

 

Na próxima semana serão trazidas considerações pessoais sobre ambos os Projetos de Lei referidos nesta Coluna nas últimas semanas.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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