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As repercussões jurídicas da “Cláusula de Raio”

A cláusula de raio é especialmente comum nos contratos empresariais, como nas franquias e locações imobiliárias comerciais. Destina-se a criar uma zona territorial de não concorrência durante a vigência da relação contratual, ou por algum tempo após o seu encerramento.

Funciona da seguinte maneira, exemplificativamente: imagine-se que em uma relação contratual de franquia haja no contrato a previsão de que, durante dois ou três anos (lapso temporal médio nessas situações) após o fim do contrato, a franqueada não poderá explorar o mesmo ramo de atividade econômica da franqueadora em um raio de alguns quilômetros a contar do endereço onde funcionava o estabelecimento comercial da franqueada (ou, por vezes, de outras franqueadas que à época mantenham relação com a mesma franqueadora).

Isso significa dizer que durante tal período, e em tal zona territorial, a franqueada não poderá explorar o mesmo ramo econômico de fornecimento de produtos ou serviços – não havendo vedação à exploração de atividade econômica diversa. Trata-se, evidentemente, de uma cláusula restritiva de direitos. No caso, de direitos previstos na Constituição da República: a livra iniciativa e a livre concorrência (art. 170, caput e IV). Assim, em sendo uma cláusula restritiva, como tal também há de ser interpretada (Código Civil, art. 114).

É por isso que os tribunais brasileiros, embora não considerem as cláusulas de raio ilegais por si só, têm colocado limites à abrangência territorial da zona de não concorrência. Isso com o objetivo final de preservar a livre iniciativa, a livre concorrência e, em último grau, a defesa dos consumidores, uma vez que mercados concorrenciais tendem a ofertar ao público final produtos e serviços de maior qualidade e por menores preços. Quando considerados abusivos, os raios contratualmente previstos podem ser encurtados por decisão judicial.

Tal como nos contratos de franquia, tem sido comum também a previsão de cláusulas de raio em contratos de locação imobiliária comercial, especialmente em shopping centers.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Inadimplemento Antecipado

Novo episódio da série “Direito Civil em pílulas”, desta vez sobre a teoria do inadimplemento antecipado:

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Venda casada (II): PROCON de Fortaleza multa Apple e Samsung em R$ 25 milhões

Por Hemerson Araújo[1]

A discussão a respeito dos “celulares sem carregadores” se estende, e dessa vez é uma decisão do PROCON de Fortaleza – CE que ganha destaque. No último dia 12, o Departamento Municipal de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor trouxe a público as multas milionárias aplicadas contra a Samsung e a Apple por comercializarem seus aparelhos celulares sem carregador. A soma das multas é de R$ 25.931.250,00.

O PROCON de Fortaleza informou que seus agentes fizeram visitas a lojas do centro e de alguns shoppings da cidade e constataram a prática. Além disso, afirma o Departamento que diversas irregularidades foram verificadas, tais como a ausência de informação sobre a falta do carregador na caixa dos aparelhos, o que amplia manifestadamente a vantagem das próprias empresas em comercializar mais um produto: o carregador que falta na caixa.

Essa conduta é tipificada no Código de Defesa do Consumidor – CDC, no seu artigo 39, e configura venda casada (como explicado já aqui[2]). Assim, a sul-coreana Samsung foi multada em R$ 15.558.150,00, já a Big Tech Apple teve uma multa menor, R$ 10.372.500,00. A diferença nos valores se dá ao fato de que esta é a primeira multa que a Apple recebe do PROCON de Fortaleza.

Em uma nota, a Samsung afirma que seus clientes podem resgatar o adaptador de carregamento, de forma gratuita, e até 30 dias a partir da data de emissão da Nota Fiscal do produto, através do site. Já, a Apple não se manifestou.

 


[1] Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí. Estagiário no escritório Gabriel Rocha Furtado Advocacia. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito – República.

[2] Há como colocar o link da outra matéria aqui?  Este link: https://cidadeverde.com/cadernojuridico/116050/celular-sem-carregador-venda-casada

Férias

A coluna está de férias, com retorno em 08/02/2022.

Feliz Natal e um saudável Ano Novo!

Fundos de Investimento Imobiliário (FII) não podem adquirir cotas em Sociedades em Conta de Participação (SCP)

Por Gabriel Furtado e Hemerson Araújo[1]

 

A Superintendência de Supervisão de Securitização (SSE) da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou o Ofício Circular CVM/SSE 2/2021. O documento tem o objetivo de divulgar o entendimento da SSE/CVM pela não possibilidade de aquisição de cotas em Sociedades em Conta de Participação por Fundos de Investimentos Imobiliários (FII). A Sociedade em Conta de participação, ou SCP, é uma sociedade não personificada em que há um contrato entre sócios ostensivos e participantes. Ou seja, estes últimos, também chamados ocultos, figuram como investidores, mas não respondem pela sociedade - ônus que é sustentado pelo sócio ostensivo. Desse modo, o sócio oculto é sócio, mas não é responsável.

Ocorre que a Instrução número 472 de 2008 da Comissão de Valores Mobiliários estabelece no seu artigo 45 um rol de ativos que podem ser adquiridos pelos FII’s. Ou seja, descreve-se onde pode haver participação dos Fundos de empreendimentos/investimentos imobiliários. Dessa maneira, a discussão recaia sobre a possibilidade de as cotas de SCP’s serem adquiridas por FII’s. Assim, o Ofício Circular 2/2021 da CVM/SSE é cunhado com o objetivo de delimitar este rol e asseverar a não possibilidade de participação dos FII’s em Sociedades em Conta de Participação. Os seguintes fatos formaram base para o entendimento:

  • A atividade constitutiva do objeto social da SCP é exercida unicamente pelo sócio ostensivo.
  • As SCP´s não possuem autonomia patrimonial, bem como representação judicial, ativa ou passiva.
  • Não há liquidante de uma SCP, porque não se segue liquidação e partilha, e em caso de falência do sócio ostensivo, o sócio participante torna-se credor quirografário da massa falida; e
  • É o sócio ostensivo quem assume obrigações perante terceiros, restando a SCP desprovida de personalidade jurídica - REsp 168028/SP

Assim, a SSE compreendeu que a SCP não está no rol dos ativos que podem ser adquiridos por um Fundo de Investimento Imobiliário (rol contido na Instrução CVM 472/2008, art. 45, III).

Ofício Circular CVM/SSE 2/2021.

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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[1] Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí. Estagiário no escritório Gabriel Rocha Furtado Advocacia. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito – República.

Terreno sem edificações não obriga pagamento de taxa de ocupação, em caso de desistência da compra

Por Hemerson Araújo[1]

O contrato é uma forma utilizada por diferentes partes com interesses afins para sagrar um acordo entre em si. Desse modo, não se tratam de palavras e afirmações soltas e descompromissadas, mas da lavratura de um acordo de vontades com o intento de cumpri-las. No entanto, existem previsões dentro do direito contratual para os casos em que desfazimento deste negócio jurídico é agora a vontade das partes, nascendo a figura do distrato – contrato em que as partes desfazem um outro –, por exemplo.

O desfazimento de um negócio jurídico também pode ocorrer por meio da resolução, hipótese prevista no art. 475 do Código Civil, em que “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”. Aqui, por exemplo, o vendedor pode pedir a resolução contratual por não ter recebido o valor da venda, ou o comprador pedir a resolução por não ter recebido o objeto da compra.

O entendimento a respeito do inadimplemento ou da impossibilidade de uma parte é arcar com suas responsabilidades contratuais é claro na lei e na jurisprudência. Contudo, uma discussão chegou até o Superior Tribunal de Justiça – STJ no que tange à obrigação do pagamento de taxa de ocupação de um imóvel cujo contrato de compra e venda foi alvo de desistência.

No caso concreto, uma empresa agropecuária esperava ser indenizada por comprador de um imóvel rural que desistiu da compra. O motivo da desistência foi de que o comprador não se encontrou em condições de arcar com as parcelas da compra. Assim, a empresa requiriu o pagamento pelo tempo em que o imóvel esteve na posse do promissário comprador.

Para compreender o caso, urge ressaltar que a natureza jurídica da taxa de ocupação coincide com a do aluguel, servindo para remunerar o vendedor pelo tempo que o comprador ocupou o imóvel, sem pagar aluguel. Ou seja, a obrigação de pagar a taxa de ocupação tem origem na vedação ao enriquecimento sem causa, como demonstra a Relatora, ministra Nancy Andrighi.

Contudo, o entendimento das instâncias inferiores foi reafirmado pela terceira turma do STJ no sentido de negar provimento ao recurso. Ocorre que a relatoria compreendeu que, por estar o imóvel vazio – sem edificações –, não conseguiria o comprador ter obtido nenhuma vantagem e, assim, não configurado enriquecimento sem causa. Dessa maneira, não há concretude ou segurança na ideia de que o comprador obteve vantagens com a cessão a terceiros, nem tampouco retirou proveito com o terreno, algo que justificaria o enriquecimento sem causa.

A relatora compreendeu ser equivocada a fixação de taxa de ocupação do imóvel. Resume que:

O mero exercício da posse do imóvel por parte do promissário comprador não basta para sua condenação ao pagamento de taxa de ocupação/aluguéis, pois seria preciso, para tanto, que o comprador tivesse fruído de uma vantagem (enriquecimento do beneficiário) que deveria, com segurança e por justa causa, ter ingressado no patrimônio da recorrente (empobrecimento do lesado).

Negado, assim, provimento ao REsp 1.936.470 – SP.

 


[1] Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí. Estagiário no escritório Gabriel Rocha Furtado Advocacia. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito – República.

O condomínio edilício responde pelos danos causados por seus empregados

A responsabilidade civil, via de regra, é por fato próprio (comissivo ou omissivo), atribuindo-se ao próprio agente causador do dano a obrigação de indenizar os prejuízos sofridos pelo lesado (artigos 186 e 927 do Código Civil). Eventualmente, porém, o ordenamento jurídico atribui a uma terceira pessoa (natural ou jurídica) a responsabilidade civil pelos fatos praticados pelo autor do dano, sendo essa modalidade, denominada de responsabilidade civil pelo fato de terceiro ou pelo fato de outrem, regulada, especialmente, no art. 932 do Código Civil.

Nesse contexto, a parte final do enunciado normativo do inciso III do art. 932 do Código Civil, ao dispor acerca da responsabilidade do empregador por ato praticado por seu empregado ou preposto, estabelece ser ele responsável pelos atos praticados no exercício do trabalho ou em razão dele, sendo objetiva (independente de culpa) essa modalidade de responsabilidade civil. A doutrina e a jurisprudência oscilam entre as teorias da causalidade adequada e do dano direto e imediato (interrupção do nexo causal) para explicar a relação de causalidade na responsabilidade civil no direito brasileiro.

O importante é que somente se estabelece o nexo causal entre o evento danoso e o fato imputado ao agente quando este surgir como causa adequada ou determinante para a ocorrência dos prejuízos sofridos pela vítima. No caso, o evento danoso ocorreu com a participação do empregado do condomínio, tendo em vista que o empregado permaneceu no trabalho e lá mesmo se embebedou, além de ter se locupletado da informação adquirida em função de seu emprego para ingressar no veículo e causar o dano.

Qualquer que seja a teoria que se considere para verificação do nexo causal (equivalência dos antecedentes, causalidade adequada ou dano direito e imediato) deve-se reconhecer que os fatos imputados ao condomínio estão situados no âmbito do processo causal, que desemboca na sua responsabilidade, sendo causas adequadas ou necessárias do evento danoso.

  • STJ - REsp 1.787.026 RJ


Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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Celular sem carregador: venda casada

Por Hemerson Araújo *

Quem nunca se deparou com situações como “só é permitido o consumo de alimentos vendidos no cinema” ou “este produto necessita de contratação de seguro” ou, ainda, “a inclusão do cartão de crédito é obrigatória na abertura de uma conta bancária”? Situações como estas são mais frequentes do que você imagina e são ilegais. Essa prática é chamada de venda casada, e ocorre quando o estabelecimento, para vender um produto ou serviço que é realmente desejado, obriga o consumidor a levar um outro não desejado.

Assim, ao invés de um só, a loja tem dois de seus produtos vendidos e, desse modo, lucra em dobro. “A garantia estendida já está inclusa no valor do produto”. Essa conduta é vedada pela Código de Defesa do Consumidor e está enquadrada no rol das práticas abusivas.

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: 

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

Bem, no ano passado, o tão esperado lançamento dos novos iPhones – que ocorre geralmente no terceiro trimestre do ano – veio acompanhado de uma notícia que não agradou. A Apple anunciou que seus aparelhos (iPhones 12) viriam sem a fonte de carregamento, o carregador. No entanto, a Maçã o tirou também da caixa todos os seus iPhones que ainda estavam sendo comercializados. A medida teve como justificativa a redução do descarte de lixo eletrônico no meio ambiente.

Mas, você ainda precisará carregar o seu celular, o que te fará correr atrás de um carregador. Foi esse incômodo que fez um consumidor ingressar com uma ação contra Apple e o Magazine Luiza – empresa onde o smartphone foi adquirido. Então, o Juizado Especial Cível de Nazaré (BA) condenou solidariamente as duas empresas a entregar um carregador para o iPhone e a pagar R$ 3.000 (três mil reais) ao consumidor por danos morais.

Renato Datolli Neto, juiz leigo, prelecionou que é de conhecimento geral que a Maçã retirou os seus carregadores da caixa de seus smartphones, e seria improvável o desconhecimento do comprador. Contudo, isso não torna lícita a prática da empresa. Vista a essencialidade do carregador para o funcionamento do iPhone, que obriga o consumidor a comprá-lo de modo separado, para carregar usualmente a bateria do celular. Além disso, a gigante do Vale do Silício não comprovou uma real diminuição no preço dos seus celulares, após a retirada da fonte, configurando a venda casada.

A sul-coreana Samsung fez o mesmo que a Apple com alguns de seus smartphones. E, na última semana, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, após movimentação do PROCON-SP, notificou as empresas a respeito da falta dos carregadores nas caixas.

 

* Acadêmico de Direito (UFPI)

Direito e Literatura, um diálogo possível e necessário

Por Luís Guilherme Tavares Santos[i]

 “Para cada constituição existe um épico, para cada decálogo, uma escritura sagrada.”[ii]

 

A escolha por uma carreira por vezes suplanta as vocações e relega ao papel de hobbies atividades consideradas essenciais para nós. Manter sonhos e paixões como parte da trajetória profissional é um desafio a ser exercido reiteradamente, desde os passos iniciais em uma graduação até as árduas escolhas de trabalho. Mas sonhos são o combustível dos dissidentes, e em um mar de tecnicismo no qual um jurista que permanece indiferente ao toque de versos literários se torna a regra, buscar os que permanecem mergulhados nas mais belas prosas e universos de uma fantástica realidade é dever daquele que aspira à verdadeira compreensão do Direito.

Um escrito, ainda que formal, só ganha vida e sentido com a sua percepção como narrativa, ou quando lhe emprestamos significados em sua construção. Todos nós somos escritores, seja quando redigimos peças de reprodução massiva, seja quando rascunhamos mensagens de carinho a pessoas queridas. Portanto, é incompreensível como por vezes nos instam a separar completamente aquilo que se escreve por dever profissional do que se escreve por paixão.

Contrariar esse movimento demanda autenticidade e a certeza de que se lhe pedem que distancie os amores das responsabilidades, que se reforce o compromisso com o que lhe é caro. Nessa jornada de descobrimento e perseverança, é sempre saudável encontrar companheiros, e a descoberta do livro Mil Vezes mais justo trouxe certa luz a muitas obscuridades na falsa divisão entre o jurídico e o literário. A obra, fruto do desejo do professor Kenji Yoshino em oferecer uma compreensão do Direito como um conjunto de histórias, utiliza-se das obras de um dos maiores autores ocidentais para ilustrar conflitos contemporâneos sobre justiça, poder e legalidade.

Explorando a humanidade e atemporalidade em cada uma das principais peças do Bardo, Kenji nos apresenta um mundo restrito aos eternos amantes, um círculo de discussões em que se parte dos livros para os casos, e dos versos para os fatos. Os ensaios da obra aliam o debate entre as peças shakespearianas de com problemas contemporâneos de justiça.  

Somente a título de prévia e exemplo, no capítulo intitulado O Advogado, no qual aborda a peça O Mercador de Veneza.  O foco da peça é direcionado ao modo como o entendimento pode ser manipulado pela oratória, pela argumentação, seja quando Pórcia, elege seu marido, seja quando o absolve no julgamento da ação proposta por Shylock. O julgamento acerca do empréstimo, cuja insolvência seria compensado por uma libra de carne, toma um rumo inesperado graças a retórica de Pórcia, disfarçada de advogado, alega que não estaria incluso o derramamento de sangue, tal como traduziu e adaptou Ariano Suassuna.

Apesar de tomarmos como genial a argumentação utilizada, Kenji Yoshino alerta que por mais que vejamos como belo o dom de usar as palavras e suas várias compreensões para criar uma narrativa, quando isso é feito em um processo, por vezes pode caracterizar uma violação do Estado de Direito, um subterfúgio para burlar as normas postas. Exemplifica essa má utilização da retórica com o episódio envolvendo o ex-Presidente Bill Clinton, e o uso que fez de oratória para se evadir de um caso de violação as regras políticas e jurídicas e demonstra que o que por vezes visto como belo, pode ser ameaça a ordem legal como prezamos.

Já no capítulo O descobridor de fatos, discute-se Otelo, peça que ilustra bem como o modo como se decide desvendar os fatos pode induzir a grotescos erros, seja por influência de outros ou por crer que provas visuais, a despeito de todo nosso conhecimento, se torna irrefutável. Sem revelar mais do que os pontos centrais da trama, a discussão trazida pelo livro se centra em um determinado ato da peça, quando Iago instiga Otelo a crer que Desdêmona o está traindo com Cássio. A essa acusação enviesada pela malícia de Iago, segue-se a apresentação da Prova concreta da traição, o lenço da donzela encontrado nos aposentos de Cássio, lenço este que havia sido o primeiro dos presente de Otelo à amada. O fim da antecipada tragédia e dá com o assassinato de Desdêmona por aquele que lhe prometeu amor eterno.

A trágica morte revela a principal lição do capítulo, já que a suposta traição, fruto apenas da malícia de um conselheiro odioso, demonstra como ao esquecer todos os demais fatos e concentrar-se no lenço apresentado por Iago, Otelo se afastou da racionalidade na descoberta de fatos. O paralelo é realizado com o julgamento do ex-jogador O. J. Simpson, o qual suscitou, além das evidentes discussões quanto ao plano de fundo racial, debate acerca da falibilidade do júri, outrora considera oráculo da justiça, mas que por sua composição humana sujeita-se coletivamente a falhas a que qualquer indivíduo pode incorrer.

Eximindo-se de proferir veredito acerca da inocência ou não do ex-atleta, o livro apenas reforça como apesar de todas provas apresentadas pela promotoria (vestígios de DNA, manchas de sangue do acusado nos locais e corpos das vítimas, as luvas personalizadas encontradas na cena do crime), toda a argumentação foi esquecida no momento em que um dos membros da acusação pediu para que O.J. Simpson provasse a luva e esta não serviu perfeitamente. A inocência, ou melhor a não culpa¸ exarada na decisão do Júri, foi influenciada diretamente pela representação da luva, que faz as vezes do lenço de Desdêmona, provando apenas que “o ser humano tem a tendência a superestimar o concreto em detrimento do abstrato – quando não podemos avaliar o que é importante, tornamos importante o que podemos avaliar”.[iii]

Sem estragar a prazerosa surpresa da leitura desta obra, fica a mensagem sobre possibilidade de união dos desejos jurídicos e literários, é exposto como tudo isso fica restrito a uma “jurisdição da vida”, já que só nesta poderemos discutir as implicações da justiça, da lei e das normas. Ou melhor posto, “quando escapamos da jurisdição da vida, não escapamos apenas do império da lei, mas também do império da justiça. A justiça é a virtude suprema dos vivos. Mas só as pessoas infelizes pensam na justiça em seu leito de morte; as felizes pensam no amor”.[iv]

 


[i] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Membro do escritório Gabriel Furtado Advocacia, atuando nas áreas de Direito Civil, Empresarial e Tributário (OAB/PI nº 20.224). Membro do Grupo de Pesquisa Direito Civil XXI (UFPI) e do Conselho Editorial da Revista Inverbis (UFRN).

[ii] YOSHINO, Kenji. Mil vezes mais justo: o que as peças de Shakespeare nos ensinam sobre a justiça. Editora WMF Martins Fontes, 2014.

[iii] Idem.

[iv] Ibid.

Tempo e História: Victor Nunes Leal

Victor Nunes Leal foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), por decreto de 26 de novembro de 1960, do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, na vaga decorrente da aposentadoria do ministro Francisco de Paula Rocha Lagôa, tendo tomado posse em 7 do mês seguinte. Eleito vice-presidente, em 11 de dezembro de 1968, foi empossado na data imediata.

“Victor Nunes Leal é uma das maiores personalidades do seu tempo, como pensador, jurista, humanista e, sobretudo, como vítima do obscurantismo da ditadura que o cassou por puro revanchismo, sem considerar a sua grandeza humana e intelectual”. A afirmação foi feita pelo ex-presidente nacional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Técio Lins e Silva, após o lançamento do livro Crimes políticos – A hermenêutica de Victor Nunes Leal no STF (Freitas Bastos Editora), de autoria de Aurélio Wander Bastos.

Veja o breve documentário produzido em sua memória:

 

 

Gabriel Rocha Furtado é Advogado e Professor de Direito Civil (UFPI e iCEV), em nível de graduação, especialização e mestrado. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Escreve para o Caderno Jurídico sempre às terças-feiras.

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